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O humanista que anunciou um mundo frio, sem compaixão

Ele previu que a ânsia de consumir e ser consumido faria surgir um novo fascismo

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Certa vez perguntaram ao cineasta Marco Tullio Giordana, autor de um documentário sobre a morte de Pasolini (Pasolini: Um Delito Italiano), qual a relevância de sua obra na Itália atual e no mundo globalizado. Giordana não teve dúvidas: respondeu que os escritos do poeta e cineasta italiano constituem, em seu conjunto, um livro de profecias sobre tudo o que acontece hoje no globo, do avanço do terrorismo ao desejo irrefreável de uma sociedade que já não tem outra meta além de consumir e ser consumida. Entre seus escritos, Giordana destacou um ensaio sobre a televisão em que Pasolini classifica o veículo de a mais perniciosa entre todas as invenções, por uniformizar culturalmente o mundo, destruir valores e ditar mais regras do que jamais sonharam líderes fascistas do passado. O mundo, profetizou Pasolini, ainda iria conhecer uma espécie de fascismo bem pior que todos os fascismos, inimaginável até mesmo nos mais horríveis pesadelos de George Orwell. Com fundamentalistas atirando aviões contra prédios, insanos ameaçando destruir metrópoles, homens-bomba matando inocentes e líderes mundiais apostando corrida armamentista, dificilmente alguém ousaria contestar o dom profético de Pasolini, que, além dos desastres políticos e da uniformização cultural, previu o advento de um mundo sem lugar para a compaixão, em tudo parecido com os horrores denunciados em seu último filme, Salò (Os 120 Dias de Sodoma). Salò trata de uma república fascista instaurada na tela como metáfora baseada numa criação literária, a do marquês de Sade. Adaptada pela realidade dentro da prisão iraquiana de Abu Ghraib, centro de tortura antes e depois de Saddam Hussein, a parábola chocou o mundo com imagens de prisioneiros sendo ameaçados por cães pastores, abusados sexualmente e humilhados por militares americanos que, teoricamente, deveriam defender os valores democráticos dos EUA - contra Hussein, o que é um paradoxo. Por que esses soldados precisavam inventar histórias de transgressões sexuais entre presos e fotografar a si mesmos entre eles como senhores de corpos alienados, tratados como despojos sem alma? Porque esses soldados já estão mortos e não sabem. São homens destituídos de alma, sem compaixão, que transgrediram sua condição humana a ponto de não mais se identificar com nenhuma história humana. Nem mesmo a deles. E quem os fez assim? Um poder uniformizador que lança criaturas em série para consumir e serem destruídas, num infernal processo cíclico de tortura e captura, exatamente como denunciou Pasolini em filmes como Salò, em livros de poesia como Transumanar e Organizar e ensaios jornalísticos (publicados no Brasil em livros como Caos). No fim da vida, Pasolini concluiu que a crise da modernidade é, fundamentalmente, uma crise de fé. Como resposta a esse ciclo infernal de captores e capturados, recomendou buscar no passado respostas para o presente. Sua nostalgia de uma religião ancestral, agrária - porque todas as religiões são campesinas, dizia - não se justifica apenas pelo sentimento de exclusão do mundo moderno e laico, mas pela certeza de que o sentimento do sagrado ainda vive no coração do homem contemporâneo, sufocado pelo descrédito e pela desmemória. Como no princípio era o Verbo, foi na palavra que Pasolini encontrou seu meio de expressão, auxiliado pela leitura de um formalista russo, Vladimir Propp. As investigações estruturalistas de Pasolini vão além de Propp e da perspectiva semiológica barthesiana. Pasolini fez de sua poesia - e, por extensão, de seu ''''cinema de poesia'''' - um projeto estético-existencial dedicado ao resgate do dom profético das religiões antigas, que acreditavam na palavra como instrumento do sagrado. Numa sociedade que elimina dialetos e culturas, como o mito vai sobreviver? Salvando justamente essas antigas culturas, não as eliminando por decreto ou criando entidades abstratas como a União Européia, que fazem os pobres terem vergonha de seus dialetos e negar a própria cultura. Em síntese, a mensagem pasoliniana é: ceda ao processo ritualístico, aceite o mistério que contradiz a gramática ''''moderna'''' e uniformizadora que nega as culturas periféricas - e não é sem razão que um de seus projetos era filmar a Orestéia com atores de tribos africanas representando em seus dialetos. Pena que não tenha saído do papel. A África e seus mitos continuam tão esquecidos como em sua época.

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