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''O homem mais esperto que já existiu'' não existe mais

É como Kurt Vonnegut Jr. definiu o crítico americano John Leonard, que morreu no dia 5, aos 69 anos

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Magro, cara de teólogo, o menino prodígio de Washington, parcialmente criado na Califórnia e amadurecido em Nova York, preferiu ser militante sindical, organizador comunitário (que nem Obama) e colher maçãs (que nem um personagem de Steinbeck deslocado dos vinhedos californianos para as macieiras da Nova Inglaterra) a concluir os estudos em Harvard, onde, aliás, só se matriculara por "conveniência geográfica". Por que perder tempo com uma educação formal se o autodidatismo era tudo quanto bastava para um rapaz absurdamente inteligente e culto, que sonhava com uma carreira literária e acabou se tornando o mais brilhante e admirado jornalista cultural dos EUA de sua geração? Estou tentando mimetizar, muito toscamente, o estilo de John Leonard, mas prometo desistir logo. Pronto: já desisti. O semancol falou mais alto. O inimitável John (Dillon) Leonard - crítico, editor, romancista bissexto, "o homem mais esperto que já existiu" (Kurt Vonnegut Jr. dixit) - morreu no dia 5, aos 69 anos, e é bastante provável que você não tenha sido informado dessa perda lamentável e, sem hipérbole, irreparável, para o jornalismo e a despoluição intelectual do planeta. Já sobre a morte, na véspera, também de câncer, de Michael Crichton, é quase certo que você conheça até detalhes irrelevantes; vale dizer, todos os detalhes. Aos best sellers, tudo; aos criadores fundamentais, o silêncio da ignorância. Incompreensível silêncio. E ainda mais injustificável ignorância. Quem jamais cruzou com um texto dele na vida, well, merece uma vaga no Purgatório para nefelibatas que Dante deveria ter criado no seu Inferno. Lasciate ogni ignoranza, voi ch?entrate! Porque depois de passar por Berkeley, trabalhar na Pacific Radio de San Francisco (ao lado de Pauline Kael, ainda uma desconhecida), e, já em Manhattan, desperdiçar tempo, neurônios e talento literário na confecção de legendas para fotos de uma agência noticiosa, Leonard, traído por uma gozação ao folclore do Greenwich Village, publicada por uma revista obscura mas ao alcance dos olhos do lince conservador William F. Buckley Jr., arrumou emprego na revista National Review (imagine o desconforto de um ativista do movimento contra a guerra do Vietnã encarregado de monitorar a imprensa de esquerda no bastião do conservadorismo político), de onde partiu para uma meteórica escalada a todas as culminâncias da mídia americana. Escreveu na Life, Newsweek, Esquire, Vogue, Playboy, Harper?s, Atlantic Monthly, Ms., New York Magazine (pré e pós-Rupert Murdoch), TV Guide, no Washington Post, Los Angeles Times, Newsday, e, com confesso orgulho, na New York Review of Books, New Statesman, Yale Review, Tikkun e The Nation (cuja editoria de livros comandou, ao lado da mulher, Sue, entre 1995 e 1998). Sem contar seu mais vistoso palco: o New York Times, onde foi crítico literário (a partir de 1967) e editor do suplemento dominical de livros (em sua fase áurea: 1971-1975, um show de quase 80 páginas, quase o triplo do atual). Se acrescentarmos suas atividades radiofônicas (comentários literários na National Public Radio) e televisivas (idem no programa Sunday Morning, da CBS), um currículo imbatível. Comparou-se a um "pássaro numa gaiola", a gaiola corporativa (Time, N.Y. Times etc) onde, segundo ele, todos os repórteres, críticos e jornalistas culturais, bem ou mal, "aprendem a cantar". Bateu de frente com dois ou três manda-chuvas do Times por dar abrigo no suplemento de livros a ensaios contra a guerra no Vietnã e, entre outras "petulâncias", baixar a lenha no primeiro volume de memórias de Henry Kissinger. "O Times é uma instituição de centro e você não é de centro", jogou em sua cara o então editor-executivo do jornal, Arthur Gelb, antes de lhe confiscar um cargo - e Leonard dar de ombros à ameaça de que nunca seria alguém fora do jornalão. Leonard passaria os 26 anos seguintes desmentindo, categoricamente, esse furadíssimo agouro. Criativo, versátil, preciso, enciclopédico e muito engraçado, Leonard jogava na mesma liga de Edmund Wilson e Dwight Macdonald. Páreo para ele, na atualidade, só vejo Umberto Eco e Gore Vidal. Praticamente tudo o interessava. Dava a impressão de haver lido quase todos os livros já publicados (devorava, em média, cinco por semana), não fazia concessões na hora de opinar e expor suas idéias. Criou expressões ("cult studs", "psyclops", "Frankfurtivos"), frases e imagens memoráveis: "Os single bars são os postos de gasolina da libido"; "Murrow (o jornalista de TV Edward Murrow) era o Bogart com microfone"; "Os presidentes americanos costumam entrar em cena como os elefantes em Aída"; "Quando em repouso, Mandela parece esculpido em música, com versos de Rilke"; "Minha admiração pelos livros é em parte explicada por Hegel e Tinker Bell". Mesmo que fosse necessário explicar aos leitores quem era Tinker Bell (a Sininho de Peter Pan), Leonard não o faria. Que os leitores recorressem aos dicionários, às enciclopédias, consultassem os amigos - ou, de uns tempos para cá, o Google, para descobrir o que, diabos, quer dizer "zaibatsu". E "Khmer Newts". E "Post-Toasties". E "Ike Snooze". (Experimente "Khmer Newts". O máximo que o Google informa é que a expressão faz parte do subtítulo tomwolfeano de When the Kissing Had to Stop, formidável coleção de ensaios de Leonard sobre política, cinema, literatura, filosofia, arqueologia, ficção científica, rock cyberpunk, jornalismo, memórias, etc, editada pela New Press em 1999. Mapa da mina: Khmer, de Khmer Vermelho; Newts, de Newt Gingrich, o líder republicano responsável pela consolidação do poder conservador na política americana, na década passada.) Não me esqueci, três parágrafos acima, de Otto Maria Carpeaux, George Steiner e outras notórias sumidades da erudição contemporânea. Ocorre que o belvedere de Leonard dava para todas as paisagens culturais, sem menosprezo das savanas. Nada do pop lhe parecia desconhecido. Carpeaux não entendia patavina de esportes, música popular e televisão. Duvido que Steiner saiba por que Leonard juntou Macondo e Mu numa mesma frase sobre reinos fantasiosos. Ou será que Steiner, para minha surpresa, um dia leu os quadrinhos de Brucutu? Por falar em Gabriel García Márquez, Leonard foi o primeiro crítico a exaltar Cem Anos de Solidão na grande imprensa americana. Também promoveu Eduardo Galeano, Günther Grass, mas, que me lembre, nenhum escritor francês ainda vivo (para ele, a literatura francesa morrera num acidente de automóvel em 4 de janeiro de 1960 - touché!). Refletiu na frente (e melhor) sobre a ficção de Don DeLillo, Thomas Pynchon, Toni Morrison (que o levou como acompanhante quando foi receber o Nobel de Literatura em Estocolmo, 15 anos atrás), Mary Gordon e Grace Paley. Leonard foi o mais lúcido e estimulante crítico de televisão de todos os tempos. Comprove lendo a coletânea de ensaios Smoke and Mirrors: Violence, Television, and Other American Cultures (The New Press, 1997). Nunca o publicaram aqui. Seria uma temeridade fazê-lo. Seus textos são um vórtice de alusões, referências, jogos de palavras e justaposições, um pouco como os de Cabrera Infante e até mais alérgicos a traduções. Experimente traduzir, de forma correta e sem anular a graça, o subtítulo de When the Kissing Had to Stop: "Cult Studs, Khmer Newts, Langley Spooks, Techno-Geeks, Video Drones, Author Gods, Serial Killers, Vampire Media, Alien Sperm-Suckers, Satanic Therapists, and Those of Us Who Hold a Lef-Wing Grudge in the Post Tosties New World Hip-Hop." Eu não me atreveria.

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