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O grilo falante da Austrália negra

Autor de A Terrorista Desconhecida defende aborígines até em melodramas como o de Luhrmann

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O escritor Richard Flanagan, nascido na Tasmânia há 48 anos, é o tipo de autor que os australianos gostariam de ver pelas costas. Pelos jornais já denunciou premiês envolvidos em corrupção política, apontou responsáveis pela devastação da florestas da Tasmânia e ainda criticou a paranoia dos seus compatriotas, que levou os mais reacionários a defender até a tortura contra possíveis suspeitos de terrorismo. Flanagan, um dos roteiristas da superprodução Austrália, que estreia nesta sexta-feira no Brasil, falou com o Estado por telefone, da Tasmânia, sobre o filme e seu livro A Terrorista Desconhecida (Companhia das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen, 328 págs., R$ 51). Nele, Flanagan trata justamente de terrorismo, contando a história de uma stripper procurada como cúmplice de Tariq al-Hakim, "mula" (que transporta droga para traficantes) confundido com um terrorista. Quando o livro foi lançado há dois anos, na Austrália, alguns críticos classificaram a história de "implausível". Isso num país em que ocasionalmente surgem políticos defendendo o sacrifício das liberdades individuais em nome da segurança nacional. Flanagan acaba de lançar outro polêmico livro na Austrália, Wanting, em que trata tanto dos aborígines australianos como da macabra expedição de sir John Franklin ao Ártico, que terminou em canibalismo, recaindo a culpa injustamente sobre os esquimós. Flanagan, defensor das minorias, não sossegou nem mesmo quando o diretor Baz Luhrmann (Moulin Rouge) o procurou para ser corroteirista do blockbuster Austrália, concebido como um épico de Hollywood dos anos 1940 e realizado como tal - ou seja, com uma profusão de clichês e uma irresistível inclinação para o exagero. O escritor australiano aceitou a proposta, mas deu um jeito de encaixar a figura de King George, nativo com poderes mágicos que roga uma praga contra o conquistador branco. É o mais enigmático personagem de um filme que tem Nicole Kidman e Hugh Jackman tentando salvar uma propriedade rural no outback australiano. A Terrorista Desconhecida já foi definido como uma distopia pós-moderna sobre uma stripper que só pensa em roupas de grife e vive a rotina de uma Sidney paranoica, em que imigrantes são sinônimos de bombas. Impossível não lembrar do caso Jean Charles em Londres, considerando que tanto a stripper como seu amante são inocentes. Você acha que o pânico público é hoje manipulado pelos governos? Escrevi A Terrorista Desconhecida inconformado com o que acontece na Austrália e como forma de dizer que a política talvez seja mesmo nossa pior forma de expressão, no sentido de que ela e a mídia espalham o pânico e o desespero entre os cidadãos. Escrevi para entender em que se transformou a Austrália e como perdemos em generosidade e empatia por conta de nossa paranoia contra o diferente, o estrangeiro. O caso Jean Charles é a prova de que perdemos nossa habilidade para reconhecer que o sofrimento alheio pode ser o nosso no futuro, se continuarmos a caçar inocentes pelas ruas. Em 2004 escrevi sobre como os interesses do Estado podem prejudicar os cidadãos (uma crítica à política do ex-premier Jim Bacon) e creio mesmo que tudo que escrevi até hoje pode ser resumido a uma palavra: amor. Assistimos hoje a uma crise amorosa sem precedentes no mundo. Por coincidência seu livro sai aqui no mesmo mês em que é lançado O Reino do Amanhã, de Ballard, que fala de atentados terroristas num shopping inglês. Qual sua opinião sobre Ballard e sua visão pessimista da relação terror e consumismo? Não li o livro de Ballard, mas posso imaginar o que ele diz a respeito. Vivemos num mundo intoxicado pela pornografia, pelo terror e a ideia da fronteira, que é a pior de todas. Nesse sentido, creio que o livro de Chico Buarque, Budapeste, meu brasileiro preferido depois de Machado de Assis, é exemplar, por mostrar esse inferno que é se sentir estrangeiro o tempo todo e ser vítima de um preconceito cultural embutido na própria língua. De qualquer modo, não sou tão pessimista como Ballard. Acredito que a eleição de Barack Obama não foi em vão, tenho grandes expectativas sobre seu governo e espero sinceramente que ele mude o rumo da política americana que, nos últimos 25 anos, só fez alimentar a paranoia. O filme Austrália vai ser lançado aqui na próxima semana. Há quatro roteiristas nele, incluindo você, o que me parece um exagero para um melodrama pretensioso. Creio que a sua é a melhor parte, aquela que mostra a relação mágica entre King George e seu neto Nullah, não? Baz Luhrmann teve a ideia da história, mas não pude desenvolvê-la sozinho, pois estava escrevendo A Terrorista Desconhecida quando ele me procurou. De fato, reforcei a relação espiritual de Nullah e King George como uma espécie de contrapartida ao melodrama que seria o romance imaginado como uma superprodução hollywoodiana dos anos 1940 - daí a ideia de aproximar O Mágico de Oz das lendas aborígines australianas. Não sinto que foi uma concessão, mas um desafio esse o de trabalhar num blockbuster questões tão complexas como racismo e diálogo transcultural. Seu livro Wanting, que acaba de ser lançado na Austrália, fala muito sobre a visão estereotipada que os colonizadores tinham dos aborígines. Nem mesmo Dickens, a considerar o que diz o livro, escapou, comprando a versão da história da expedição de sir John Franklin como canibalismo de selvagens. Como Dickens pode ter escrito um absurdo desses? Um terrível e histórico crime foi cometido contra os aborígines deste país, até agora não reconhecido. Não diria que foi um genocídio porque seria inapropriado diante do Holocausto, mas os bem-intencionados acabaram dividindo a mesma culpa pelo cruel tratamento que os aborígines receberam do colonizador. Essa ideia do selvagem perseguiu até mesmo Dickens que, contratado para escrever sobre o possível fim da expedição Franklin, acabou colocando a culpa pelo canibalismo a bordo nos esquimós do Ártico, já que cristãos brancos jamais fariam uma coisa dessas.

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