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O eterno fascínio da velha escola

Freud e Lacan usaram linguagem visual dos modernos alemães e até a física bebeu nessa fonte

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A Bauhaus sobreviveu não apenas como uma histórica escola de arquitetura e design, mas um movimento artístico independente, que deixou frutos em toda parte - e isso tanto por seu purismo estético como pela força que involuntariamente os conservadores deram a ela, expulsando as melhores cabeças da Alemanha e obrigando-as a buscar asilo nos Estados Unidos, após a ascensão de Hitler. O livro ABC da Bauhaus, organizado por Ellen Lupton e J. Abott Miller, reúne textos de especialistas que tratam justamente de episódios nebulosos da escola de Gropius, sobretudo a incômoda conexão entre o apelo à ordem feito pela Bauhaus e a evocação do caráter mítico germânico pelo Terceiro Reich, que perseguiu e fechou a instituição. Veja galeria de imagens de obras da Bauhaus Esse é um dos capítulos mais polêmicos do livro agora lançado, na realidade mais uma obra referencial sobre a teoria e a atividade pedagógica da Bauhaus do que propriamente um ensaio político. Designer, Tori Egherman se encarrega de traçar na obra um panorama da República de Weimar à época da fundação da Bauhaus, mostrando como um país em estado de desintegração moral e ética como a Alemanha, que evocou o espírito germânico para incendiar a massa, viu nascer uma escola capaz de produzir um estilo internacional de arquitetura. E foi justamente esse feito de Gropius, o de afirmar o poder político e moral da arquitetura - capaz de definir condições de vida de uma sociedade -, que fez de sua escola uma instituição revolucionária e ameaçadora. A organizadora do livro, Ellen Lupton, em conversa com o Estado, diz que selecionou o texto não com o propósito de provocar controvérsia, como a obra de Tom Wolfe a respeito da escola, sobre o qual não tem opinião favorável. "Ele despreza o impacto provocado pela emergência da Bauhaus num mundo em ruínas, após a 1ª Guerra, e minimiza a modernidade que ela levou a outros continentes com a subsequente emigração de ex-alunos e professores da escola", diz, lembrando que conceitos como funcionalidade e artista-artesão eram impensáveis no começo do século passado. Além disso, a influência da "nova Bauhaus" fundada por Moholy-Nagy em Chicago, no ano de 1937, ou as atividades de Gropius, Albers e Mies van der Rohe nos EUA, ajudaram a criar uma outra mentalidade artística entre os americanos, levados a deglutir a obra dos abstratos de forma menos traumática. Tom Wolfe, ao contrário, acha que a modernidade arquitetônica da Bauhaus foi uma praga que se alastrou pelas cidades dos Estados Unidos e contaminou o senso estético americano com o "dicionário visual" criado por Kandinski e outros artistas europeus defensores da abstração - geométrica ou não. A designer Ellen Lupton, a esse respeito, diz que a Bauhaus não só teve de conviver no passado com uma comunidade hostil como tem de suportar, no presente, conservadores como Wolfe, avessos à ideia de que a escola é a origem mítica do modernismo. A Bauhaus foi, defende a designer, um lugar onde se reuniram diversas vertentes da vanguarda europeia para explorar uma "linguagem da visão", e não para dominar o mundo. "A reação contra os mandamentos estéticos da Bauhaus é mais ou menos uma resposta ao pai que censura a criança transgressora, que quer se expressar com autonomia", analisa a autora. Ela classifica Wolfe de "injusto" por não reconhecer o quanto essa linguagem abriu caminho para ferramentas como a internet, "impensável se os pioneiros da Bauhaus não tivessem abolido as fronteiras das expressões artísticas e promovido a interconexão entre a escrita visual e verbal". A escola alemã deu ao mundo tanto torres como a da Seagram de Nova York, assinada em 1954 por Mies van der Rohe, como ensinou o mundo a ver de novo com olhos de criança-artista - e, nesse aspecto particular, o texto do teórico Abbott Miller sobre a influência do movimento alemão do Jardim da Infância (Kindergarten) é um dos pontos altos de ABC da Bauhaus. A linguagem visual de formas elementares e cores básicas que seria adotada pela escola já estava em teste nos reformistas "jardins" da infância alemães no século 19, que se espalharam pela América e países asiáticos, fazendo com que artistas se sentissem liberados para recorrer à criança e acessar uma janela para a infância da arte - o que fica transparente tanto nas pinturas "infantis" de Paul Klee como nas obras de Kokoschka. Ellen Lupton diz mais: ela submeteu o teste de Kandinski sobre as formas geométricas elementares e cores primárias a historiadores, teóricos e escritores. Os resultados foram inesperados. Antes de todos esses, Freud, assumidamente pouco capaz de visualizar relações espaciais, elegeu o triângulo bauhausiano para desenvolver um gráfico do sujeito psicanalítico. Já a escritora Frances Butler escolheu essa forma geométrica "porque o triângulo é a forma mais pontuda, menos volumosa e mais leve e o círculo é o centro na cultura ocidental, a vitalidade sangrenta". A conjunção entre psicanálise e geometria não era exatamente impensável quando Kandinski aplicou o teste. Freud elegeu o triângulo como o "edípico", condição básica da sexualidade humana, porque na base estão o pai e a mãe e no topo do triângulo domina a criança na posição masculina, podendo trocar de lugar com os pais. Frances Butler apenas confirmou Freud. E o que seria do estruturalismo de Lacan sem a figura do triângulo bauhausiano? Nem mesmo o fundador da Bauhaus, Walter Gropius, ou seus primeiros professores seriam capazes de prever que a escola viria a se tornar objeto de fascínio entre tantos profissionais distantes da arquitetura, da pintura, do desenho e do design. "Hoje, os médicos usam os mesmos princípios para desenhar diagramas de identidade cerebral", lembra a autora de ABC da Bauhaus, enfatizando a necessidade de valorizar o legado da escola alemã. "Gropius previu uma nova era com o fim da 1ª Guerra e queria que um novo estilo arquitetônico fosse o espelho desse novo tempo, defendendo sobretudo a funcionalidade e a economia de meios, tudo o que precisamos também agora nesta época de crise econômica, marcada pelo individualismo." A linguagem "universal" da visão bauhausiana, resumida a três figuras geométricas e três cores primárias, diz ela, já levou físicos como Alan Wolf a imaginar como seria viver em um espaço com mais ou menos de três dimensões e a considerar, segundo Ellen Lupton, a estrutura fractal do mundo. Se isso não serve para atestar a importância da escola, é só abrir a janela e imaginar um planeta sem a poltrona Wassily de Marcel Breuer. Conseguiu? Estante Além do livro ABC da Bauhaus, lançado pela Cosac Naify, as estantes das livrarias têm alguns bons títulos sobre a escola de arquitetura e design alemã que ajudam a entender seus princípios e história. A Taschen, por exemplo, publicou no Brasil o livro Bauhaus, de Magdalena Droste. Na mesma linha, pode-se citar Bauhaus, de Judith Carmel-Arthur, lançado há algum tempo pela Cosac Naify. O livro Bauhaus: Nova Arquitetura (Perspectiva) é um estudo assinado por seu fundador. Gropius é analisado com muita propriedade pelo historiador e crítico italiano Giulio Carlo Argan em Walter Gropius e a Bauhaus, editado pela José Olympio e até hoje, passados 58 anos de sua publicação, o mais respeitado trabalho sobre o criador da escola. Gropius é objeto de um outro livro, Bauhaus, Dessau - Walter Gropius, escrito por Dennis Sharp e lançado pela Phaidon Press. Outra boa indicação é Bauhaus Ideal - Then and Now, de William Smock, publicado pela Academy Chicago Publishers.

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