O espírito guerreiro de Clara Nunes

Primeira biografia da cantora mineira revela dissabores e conquistas de uma vida encerrada por polêmica cirurgia malsucedida

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Nas festas de Natal e ano-novo de 1982, meses antes de ser internada na Clínica São Vicente, na zona sul carioca, para uma cirurgia de retirada de varizes, a cantora Clara Nunes disse a seu marido, o compositor Paulo César Pinheiro: ''''Pois é, nunca mais vou ver isso aqui.'''' Ela se referia à terra onde nascera, Caetanópolis, em Minas Gerais, e que visitava todo fim de ano para rever os parentes. Intuitiva e mediúnica, Clara Nunes era o sincretismo em pessoa: católica, kardecista e umbandista. Sentia as energias espirituais no ambiente onde estivesse, como pressentiu o fim próximo. Ela se valia das religiões para lidar com a fragilidade emocional, embora tivesse incrível capacidade de auto-superação. Esse perfil multifacetado, às vezes contraditório, é descrito no livro Clara Nunes - Guerreira da Utopia (R$ 49,90, 320 págs., Ediouro), do jornalista Vagner Fernandes, que dedica dois capítulos à internação de Clara e à sua polêmica morte, em 2 de abril de 1983, 28 dias após a operação malsucedida. Fernandes foi o primeiro a fazer em quase 25 anos uma entrevista longa com o angiologista Antonio Vieira de Mello, que operou Clara Nunes e que a pedido do biógrafo solicitou o desarquivamento da sindicância do Conselho Regional de Medicina do Rio sobre a morte da cantora. ''''Surgiram várias especulações sobre a internação da Clara, desde aborto e inseminação artificial até surra dada pelo Paulo César Pinheiro'''', diz Fernandes. ''''Ela morreu porque teve um choque anafilático, reação alérgica a uma substância que até hoje não se sabe qual é'''', continua. Não poderia ser inseminação artificial, porque Clara se submetera em 1979 a uma histerectomia (remoção do útero), após três abortos espontâneos. Por nutrir obsessão pela maternidade, a impossibilidade de ser mãe causou a Clara Nunes fortes abalos emocionais, superados por uma postura mais ativa na defesa da música nacional e pela entrega absoluta à carreira artística, que chegou ao auge nos anos 70, quando se envolve com o samba e se torna a primeira cantora brasileira a vender mais de 100 mil cópias. Quebrava-se o tabu segundo o qual mulheres não vendem disco. ''''Clara teve muitos dissabores na vida, e é função do biógrafo abordar as zonas obscuras da vida do personagem'''', explica Fernandes. Nascida em 12 de agosto de 1942, Clara Francisca Gonçalves era órfã de pai e mãe já aos 6 anos. Aos 15, deixa Caetanópolis, a 100 quilômetros de Belo Horizonte, para morar na capital mineira. Estava acuada pelo assassinato de um namorado, cometido em 1957 por Zé Chilau, apelido do seu irmão José Pereira Gonçalves. Na capital, continua a ser tecelã, profissão logo dispensada, pois Clara já se arriscava como crooner na noite belo-horizontina. Nessa época, ela conhece o playboy e namorado Aurino Araújo, que em 1965 se muda com ela para o Rio. A Jovem Guarda tinha estourado, e a cantora mineira flerta com ela, mas sem sucesso. Clara Nunes teve dificuldade de firmar uma identidade musical. No início da carreira, a Odeon, gravadora que lançou todos os seus trabalhos, insistia que ela interpretasse músicas românticas. Em vão. Nem a febre dos festivais de canções acertou Clara em cheio. A virada romperia no início dos anos 70 com o produtor e radialista Adelzon Alves, cujo programa tocava composições de sambistas. Seria o início da parceria profissional e amorosa que define Clara como a intérprete que resgata o visual e a sonoridade afro-brasileiros. ''''Desde Carmen Miranda, não surgia uma cantora com esse perfil'''', diz Fernandes. Quando lança o elepê Clara Nunes, em 1971, a mineira faz permanente nos cabelos, pintados de vermelho, e passa a vestir roupas que remetem às religiões afro-brasileiras. Estava criado o mito. Mas ela não podia ser apenas uma sambista ou ''''cantora de macumba''''. Segundo Vagner Fernandes, Clara teria o repertório musical ampliado pelo marido Paulo César Pinheiro, a partir de 1975. Com o compositor, a mineira filha de Ogum com Iansã exploraria sua potência vocal e se consagraria como uma das maiores cantoras da música popular brasileira.

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