O escultor da potência da forma

O americano Richard Serra, em passagem pelo Brasil, fala com entusiasmo de arte e política

PUBLICIDADE

Por Camila Molina e Maria Hirszman
Atualização:

A densa obra do americano Richard Serra, que lhe garante o título de maior escultor da contemporaneidade, é bem mais do que um exercício formal e espacial, com sinuosas e pesadas chapas de ferro que se tornaram sua marca registrada. Os atributos físicos e sensoriais, tais como peso, densidade, inclinação, são, sim, elementos centrais da produção do artista, mas a singularidade de seu trabalho deriva sobretudo de uma aguçada percepção do mundo e da arte. E, mais especificamente, do desejo permanente de promover uma relação única entre o espectador, o espaço e a obra. Ontem à noite, o artista faria uma palestra na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, como parte do evento Fronteiras do Pensamento Copesul Braskem. Ao lado da curadora Lynne Cooke, recentemente nomeada curadora-chefe do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, e que foi uma das organizadoras da retrospectiva que o escultor realizou no ano passado no MoMA de Nova York, Serra faria uma espécie de diálogo com o público tendo como tema a arte contemporânea e sua produção. Dez anos após sua primeira visita ao Brasil - Serra realizou em 1997 exposição de seus desenhos negros no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio - e se dizendo encantado com Porto Alegre, "uma cidade bonita, com bom espírito", onde ficará até amanhã, o artista, de 69 anos, natural de São Francisco, concedeu entrevista ao Estado, na qual tratou de uma ampla gama de temas, indo de aspectos mais precisos de sua trajetória a comentários precisos e diretos sobre os efeitos perversos e inevitáveis do mercado de arte e seu entusiasmo com a eleição de Barack Obama. O sr. é um homem crítico, que expressa uma espécie de desilusão quanto ao vazio da produção contemporânea e o domínio do mercado. Acredita que é possível mudar essa situação? Todos os artistas, inclusive eu, estão implicados no mercado de arte. É impossível não estar. É uma questão de sobrevivência, de mostrar seu trabalho, de ter a possibilidade, pelo menos, quando jovem, de passar por certos degraus para que um dia alguém colecione o seu trabalho. No início você entra numa noção de produção e consumo. O artista tem de encontrar seu público, experimentar. Eu não conduzo meu trabalho pelo mercado, mas a realidade do mundo que vivemos é essa, não vejo uma possibilidade de mudança e acho que as coisas só tendem a se acentuar com essa globalização. Novos mercados vão surgir, como ocorreu no passado com a Rússia, a China... Acredito no entanto que os artistas não podem fazer sua obra para o mercado e que cabe aos jovens mudar essa situação. Damien Hirst, por exemplo, está no merchandising. O extraordinário para os artistas é mudar a evolução da linguagem da arte, não reiterar o que já foi feito. O que conhece da arte brasileira? Há dez anos, durante sua visita ao Rio, o sr. mencionou que o escultor brasileiro Amilcar de Castro era um dos maiores do mundo. Ambos usam o mesmo tipo de material, o ferro, na escultura. Vê alguma sintonia entre as duas produções? Conheço o trabalho do Amilcar de Castro e fiquei muito triste quando ele morreu. Gosto muito de sua obra e ela tem, sim, muito a ver com a minha. A comparação entre os dois é verdadeira. Nós lidamos com peso, massa, gravidade, temos uma similaridade. Só vi poucas peças de Sergio Camargo e algumas coisas em catálogos, mas prefiro o trabalho de Castro. Quem conheci e achei fascinante, muito inventivo, foi o arquiteto Niemeyer, que ainda vive. Outro artista que encontrei quando estive aqui foi Tunga. E agora vi recentemente na Tate a exposição de Cildo Meireles, há duas semanas. Ótima exposição! Ele está envolvido com o público, tem um cuidado e uma busca de sentido nas situações que coloca. Mas minha geração foi mais influenciada ou próxima de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Admiro o trabalho dos dois, mais particularmente o de Lygia Clark, artista muito abstrata e fascinante. Desde a década de 1970 seu trabalho adquiriu tamanho e peso, se transformando em algo enorme, com uma escala monumental. Essa é uma das razões da predominância de sites specifics em sua produção? Ou é a necessidade de propor o confronto com o público em espaços maiores que influenciou essa direção nessa nova escalas? Não faço apenas site specifics (obras criadas especialmente para um lugar específico), mas também crio séries de trabalhos que envolvem torções, que podem ser ajustados a qualquer lugar. Se pudesse, faria apenas sites specifics, mas necessito de comissões, de projetos. Qual a importância da arquitetura para sua obra? Em uma entrevista, o sr. disse que a maioria das esculturas feitas no século 20 ignorou a revolução industrial e está ainda presa ao ato de pintar. Pode explicar essa idéia? Chamam-no muitas vezes de ?Homem de Ferro?. Esse reducionismo o incomoda? O que fiz foi ser capaz de sonhar a revolução industrial, usar o ferro no processo artístico. Isso me possibilitou expandir o trabalho, lidar com novas questões, confeccionar esculturas a partir da mesma lógica da produção, a tecnologia e o material da revolução industrial. Me chamar de "Homem do Ferro" é uma abstração. Usar expressões com caracterizações pessoais e materiais é para mim uma bobagem. Concorda quando o definem de minimalista? Não, não sou um minimalista. O que poderia ser chamado é de pós-minimalista. Minha geração é de artistas que vieram depois do minimalismo, envolvidos com a abertura do campo da escultura e que procuraram sair do objeto. O sr. se dá conta de que hoje os jovens artistas o olham com enorme admiração, como o sr. em relação a Giacometti e Brancusi, na sua juventude? O que aprendeu com eles? Não tenho uma noção de como as pessoas me vêem ou ao meu trabalho. Tenho uma vida muito privada, não saio muito socialmente no mundo da arte. Sempre fico surpreso por ver que as pessoas conhecem o que faço, que minha obra criou um certo público nos últimos 10 ou 15 anos. Mas não sei dizer realmente quais suas impressões sobre ela. O que aprendi da geração mais velha, de Brancusi e Giacometti, foi não fazer o trabalho deles, mas conhecer seu próprio trabalho. Ele me deram força pelas coisas que fizeram, pela sua intensidade, concentração e esforço. Acredito que o como você faz e o que você faz é que dá sentido ao que você cria e, se olharmos com acuidade, o que Brancusi e Giacometti fizeram foi lidar com essa concentração. Como o sr. elaborou a história da destruição de sua escultura da Federal Plaza, em Manhattan, em 1989, após uma longa batalha judicial? Foi um momento muito triste para a história da relação entre o governo americano e os artistas americanos. Estava no contrato e eles arbitrariamente decidiram destruir um trabalho de arte, dizendo que o governo tem o direito de destruir qualquer obra que encomende, o que significa dizer que, nos EUA, os artistas ainda não têm o direito de propriedade. Isso deveria ser tratado com Obama para que sua administração mude isso. O sr. pensa que as pessoas estão mais preparadas para se relacionar com a arte contemporânea hoje ou seus trabalhos não são mais tão chocantes como o foram no passado? O sr. já disse acreditar que as curvas são responsáveis pela pacificação entre você e o público regular. É verdade e por quê? Acredito que o ângulo reto é um elemento dominante do século 20 por causa da produção manufatureira, por causa da história do modernismo e em particular por causa da arquitetura. Acho que, neste século, o que vai predominar é a curva, por causa de sua relação com o corpo, com a velocidade, com a pele... Fizemos uma mudança do ângulo reto para a curva nos últimos 20 anos. O sr. se apresenta como um homem de esquerda. Como recebeu a eleição de Barack Obama? Conheci Obama há um ano e meio. Sua eleição é uma mudança tectônica na história americana, que traz os EUA para o século 21. A América estava calcificada, constipada, olhando apenas para o passado, isolacionista. Agora, será presidida por um homem do mundo, que pertence ao mundo e carrega o peso e a esperança do mundo em seus ombros. Eu gostaria de vê-lo lidar imediatamente com a situação na Baía de Guantánamo, reinstaurando o habeas-corpus, que desapareceu nos anos da administração Bush, quando qualquer pessoa poderia ser acusada de qualquer crime e ser preso sem nem mesmo saber qual a acusação. Obama precisa lidar com isso imediatamente. E há outros temas, como a pesquisa com células-tronco ou o Ato Patriótico, que dá ao governo direito de espionar qualquer cidadão. Mas a esperança que invadiu os EUA com sua eleição é algo que não vejo desde 1967, desde Martin Luther King. É a coisa mais importante que aconteceu no país desde então. Não acho que o racismo na América seja resolvido em uma ou duas gerações, mas sua eleição é um avanço que permite revermos o estado desse preconceito. Este é um grande momento para se estar nos EUA - e há muito tempo eu não podia dizer isso.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.