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O erotismo, a razão e a decoração de Matisse

Organizado pela crítica Sonia Salzstein, livro traz textos sobre esses três temas

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Dois pintores marcaram definitivamente o século que passou, Matisse e Picasso, ambos visionários com ideias conflitantes sobre a função da arte. Matisse queria que sua arte fosse "como uma boa poltrona em que se descansa o corpo cansado". Picasso, ao contrário, queria eliminar a poltrona e tirar o espectador de sua posição confortável. Será mesmo assim? Até que ponto as interpretações da célebre frase matissiana - que provocaram irônicos comentários da turma de Picasso - não conduziram a uma leitura equivocada de sua obra? O livro Matisse: Imaginação, Erotismo, Visão Decorativa (Cosac Naify, organização de Sônia Salzstein, tradução de Denise Bottmann, 256 págs., R$ 79) trata justamente de atualizar a discussão da pintura de Matisse, homenageado com uma exposição aberta ontem na Pinacoteca do Estado.

 

Veja galeria de fotos de MatisseNessa coletânea dedicada ao pintor figuram textos históricos de críticos como o inglês Roger Fry (1866-1934) e o norte-americano Clement Greenberg (1909-1994), análises de historiadores como o inglês T. J. Clark e o alemão Robert Kudielka, um ensaio do professor e filósofo argelino Yve-Alain Bois (autor de um livro sobre Matisse e Picasso) e outro do crítico brasileiro Ronaldo Brito. A organizadora do livro, a crítica Sônia Salzstein, convocou ainda artistas brasileiros como o pintor Paulo Pasta e a escultora e desenhista Iole de Freitas para registrarem suas impressões sobre Matisse. Cinco desses nomes - Kudielka, Sônia Salzstein, Ronaldo Brito, Iole de Freitas e Paulo Pasta - participam do Colóquio Internacional Matisse que começa na terça e vai até quinta-feira na Pinacoteca.Kudielka é a grande estrela internacional do encontro. Filósofo, o alemão defende uma leitura fenomenológica da obra de Matisse. Também por isso sugere uma nova interpretação da expressão "pura", "genuína", incessantemente perseguida pelo pintor. O critério de pureza dos primeiros modernos do século 20 não é, evidentemente, o mesmo no conturbado mundo contemporâneo, dominado, como pontuou o crítico Arthur Danto - citado por Kudielka - por ecos políticos da noção de pureza e purgação. Matisse, desde o período de Nice, começou a fazer luz com a cor preta, lembra Kudielka, mostrando como a subversão dos princípios que o pintor defendeu a vida inteira o levou a criar uma pintura em que desejo de ordem e a antagônica força expressiva travam uma luta sem-fim.O crítico Clement Greenberg viu nas telas de Matisse uma tentativa de conciliar o inconciliável. Não é, porém, o que pensa o brasileiro Ronaldo Brito. Ele diz que esses quadros "pretendem expor de maneira ostensiva o conflito, não dar trégua ao senso moderno do paradoxo". Em outras palavras, a pintura de Matisse assimilaria seus conflitos "em precário equilíbrio". Em seu ensaio sobre o pintor, T. J. Clark diz, a respeito, que uma tela como Mulher com Chapéu não é o Quadro Negro (1913), do russo Maliévitch, defendendo que os dois são os polos opostos do modernismo: o suprematista seria a revolução e Matisse, "o fulgor do Antigo Regime". O "frio e calculista" Matisse também é Matisse "o sensualista" quando usa modernamente o preto para "espreitar para além dos vermelhos e amarelos resplandecentes".O pintor Paulo Pasta desenvolve esse conceito de Clark , acrescentando que a atitude de Matisse diante do trabalho e da vida "sugere uma modalidade de ascese, de purificação". Toda a alegria de suas pinturas viria carregada de uma "operação paradoxal", na qual Matisse tenta rimar espontaneidade com complexidade. "Matisse sempre quis ser o pintor não do confronto, como Picasso, mas aquele que estabelece relações, cria pontes." Faz o outro alegre, enfim. Seu sentimento religioso, escreve Pasta, nasce do exercício do trabalho, e mesmo o seu erotismo, a volúpia de suas telas, "eram organizados", construídos "com armas apolíneas".Um dos mais originais textos da coletânea é o de Yve-Alain Bois. O coeditor da prestigiada publicação acadêmica sobre arte, a October, pergunta a origem do desejo de expansão de Matisse e ele mesmo dá a resposta: não exatamente da arte islâmica, como se pensa. O pintor visitou três mostras de arte islâmica em Paris entre 1893 e 1903, mas em seu quadro "mais islâmico", Interior com Berinjelas, não há nenhum efeito que Matisse "já não tivesse ousado alcançar por outros meios salvo o do padrão decorativo". Em suma: não há sombra de orientalismo em sua pintura, argumenta. Está aí uma opinião para provocar polêmica no colóquio sobre o pintor francês.

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