PUBLICIDADE

O dia em que Portinari virou Picasso

Masp expõe duas séries do pintor brasileiro assumidamente marcadas pela influência estilística do mestre cubista espanhol

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Existem artistas que se transformam com o tempo em epígonos da persona artística que criaram para si. É o caso de Portinari (1903-1962). Após visitar o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1939, e ver Guernica (hoje no Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, em Madri), o pintor ficou tão impressionado com o trabalho de Picasso que não teve dúvidas em emular o estilo do artista e reproduzir, dos anos 1940 em diante, um cubismo algo torto, mal digerido, abaixo do Equador. Duas séries (Bíblica e Retirantes) expostas a partir de hoje, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), são provas incontestáveis da existência dessa persona híbrida - poderíamos chamá-la Portinasso - que tentou, na primeira das séries citadas, criar um épico tão comovente como a obra-prima pintada em 1937 por Picasso. Se muitas das pinturas tardias do pintor espanhol, depois de Guernica, são variações temáticas das obras dos mestres, a de Portinari elege Picasso como modelo nessa série, produzida entre 1942 e 1943, que retrata passagens do Velho e do Novo Testamento. Há, também, citações dos metafísicos italianos (claras no canto superior esquerdo da tela Ira das Mães, de 1942), mas a referência principal é mesmo o autor de Guernica. Picasso tinha, então, um fato histórico marcante como tema de seu painel: a indignação provocada pelo bombardeio da cidade basca pelos nazistas durante a Guerra Civil Espanhola. Portinari, é provável, buscou mas não encontrou um assunto tão forte para sua série épica, segundo o curador do Masp, Teixeira Coelho. Recorreu, então, à velha e boa Bíblia. O curioso é que, justamente no final dos anos 1940, Portinari se filiaria ao Partido Comunista, alinhamento ideológico que contraria, de certa maneira, a adesão temática aos episódios bíblicos religiosos nessas obras em têmpera, de grandes dimensões, da série Bíblica. Persiste um tom paródico em alguns trabalhos da série que justificam a desconfiança no próprio tema, descartando qualquer possibilidade de Portinari criar uma obra da dimensão trágica de Guernica. Em algumas pinturas, as analogias são francamente rudimentares, como em A Ira das Mães, que retrata o episódio do massacre dos inocentes decretado por Herodes. Aos pés de uma mãe que tenta salvar várias crianças jaz uma galinha, provavelmente morta ao tentar proteger os pintinhos. Em outra tela, O Sacrifício de Abraão (1943), Portinari junta referências de Picasso e do barroco francês Laurent de La Hyre e acrescenta um dado surrealista - uma deslocada bicicleta atrás do altar em que Isaac será sacrificado. Não é só a diferença entre gêneros que distancia Portinari de Picasso. Se o espanhol foi capaz de imprimir um tom trágico ao mais poderoso manifesto antibélico da história da arte do século 20 (Guernica), Portinari foi incapaz de produzir algo além da melodramática série Bíblica, em que não faltam as copiosas lágrimas de seus profetas, depois transferidas para os sofridos personagens da série Retirantes, pintada entre 1944 e 1945. Está claro que o horror, num nível extremo, não pode ser reproduzido, nem mesmo por Picasso, mas a homogeneidade da série dedicada aos temas bíblicos por Portinari tira a força até do preto-e-branco escolhido por Picasso para fazer da arte um testemunho da crueldade (sem nuances) dos homens. Já a perspectiva monumental, épica, que Portinari sugere com base nos Evangelhos, desmorona diante de sua arte narrativa, falsamente cubista. Parece claro que Portinari imitou Picasso - atitude, aliás, nada condenável, uma vez que os mestres estão aí para serem reverenciados - sem entender os fundamentos do cubismo. Quando se desconstrói a estrutura compositiva da série Bíblica, o que se vê são linhas diagonais e sombras, não o cubismo sintético e menos esquemático de Guernica. Portinari, é provável, teve uma aproximação intuitiva, pouco intelectual, com as duas principais fases do cubismo, não chegando mesmo a entender como a desconstrução da forma servia justamente para compreendê-la melhor por meio da fragmentação geométrica do cubismo analítico. Para o curador da exposição, montada no subsolo do Masp, isso não significa, contudo, que Portinari não tivesse vocação moderna e fosse apenas um ótimo retratista acadêmico. Teixeira Coelho aponta uma das pinturas da série Retirantes (Enterro na Rede, óleo sobre tela de 1944) para mostrar seu parentesco com o muralismo mexicano - não só formal, como ideológico, considerando que os murais de Rivera também eram vistos como instrumentos revolucionários contra a opressão. Rivera, sem dúvida, foi modelo não só de Portinari como de Di Cavalcanti, mas a dicção do pintor de Brodósqui é atropelada pelo apelo melodramático de personagens à beira do caricatural. "Fica claro por seus retratos que Portinari foi um acadêmico, mas não é possível negar que sua adesão ao modernismo foi genuína", observa o curador, concluindo não ser nenhum demérito para Portinari a imitação de Picasso. Teixeira Coelho lembra ainda que o Masp tem uma obra-prima de Veronese pintada pelo rococó Boucher, que, de tanto admirar a arte do maneirista da Renascença italiana, acabou virando um Zelig dos pincéis, divertindo a corte de Luís 16 com suas cenas idílicas. Já Portinari, no lugar de pastores, partiu para a política. Serviço Portinari - As Séries Bíblica e Retirantes. Masp. Av. Paulista, 1.578, 3251-5644. 3.ª a dom., 11 h/18 h; 5.ª, 11 h/20 h. R$ 15 (3.ª grátis). Até 15/2

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.