O conhecimento a favor da vida

Em cartas ao amigo Lucílio, Sêneca apresenta profunda e enriquecedora síntese da doutrina estóica

PUBLICIDADE

Por Regina Schöpke
Atualização:

Em todos os tempos, a filosofia tem sido alvo de ódios e paixões. Há quem julgue não existir felicidade fora dela, mas há aqueles que a vêem como um veneno e chegam a perguntar, com ar malicioso, se ela serve realmente para alguma coisa. A esses Nietzsche diz que devemos responder com tom mordaz, porque se trata de pergunta igualmente mordaz. "Ela não serve para nada", diz ele. Não serve aos poderes estabelecidos, não serve à religião, nem ao Estado. "Serve apenas para entristecer as tolices." Ou, em outras palavras, ela serve apenas à vida, em sua mais alta potência. Dizer que a filosofia está a serviço da vida pode parecer uma afirmação demasiado geral, mas no fundo quer dizer apenas que, de todas as invenções humanas, ela é a única que nos prepara e nos fortalece para o mundo. A filosofia nos ensina a viver, como mostra o filósofo romano Sêneca nas páginas de Aprendendo a Viver (coletânea de algumas de suas famosas Cartas a Lucílio). Um dos representantes máximos do "estoicismo imperial", Lucius Annaeus Seneca (4º a.C. - 65 d.C.) era enfático ao afirmar que a filosofia deve ensinar a viver e não a fazer discursos. Ele, que foi o preceptor do imperador Nero, vivia num mundo muito distinto daquele que viu nascer o estoicismo e o epicurismo (a Grécia do período helenístico ou alexandrino). Essas duas escolas, importadas como o teatro e a religião, não vicejaram em Roma por acaso. Embora derivadas da tradição socrático-platônica, as filosofias helenísticas se caracterizam por um espírito completamente novo. Elas são, num certo sentido, filosofias práticas, mais comprometidas com a existência imediata (o que combinava muito bem com o espírito pragmático dos romanos). De fato, essas "novas" filosofias deixavam em segundo plano as investigações que hoje chamaríamos de "científicas", voltando-se principalmente para a ética e a estética. Melhor dizendo: para elas, a investigação acerca da natureza é inseparável da produção de uma existência superior. Afinal, de nada adianta o conhecimento, diz Sêneca, se ele não pode tornar o homem melhor ou mais feliz. Para um estóico, a felicidade está longe de ser aquela que se encontra nos prazeres desse mundo, nas riquezas ou nas honrarias. Ao contrário, ela reside na virtude, no caráter forte e imperturbável, no poder de ser senhor de si e de sua própria existência. Para Sêneca, quem é escravo de seus desejos jamais poderá encontrar alguma paz de espírito. E, sem paz de espírito, não há felicidade possível. Nas 29 cartas, traduzidas por Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves, que compõem essa edição (de um total de 124), Sêneca - sob pretexto de advertir e aconselhar seu amigo Lucílio - apresenta uma profunda e enriquecedora síntese da doutrina estóica. Mas esse escrito é mais do que isso: ele é uma verdadeira obra de arte literária, ao mesmo tempo bela e comovente, poderosa e sutil. É um verdadeiro mergulho na alma humana e, o mais interessante, é que vemos aqui um Sêneca muito diferente: não menos estóico, porém, mais "humano", mais próximo dos mortais, e até certo ponto mais indulgente com a humanidade. O tom austero e inflexível de outros escritos cede lugar aqui a um tom mais sereno, embora nem por isso menos vigoroso e obstinado. É, portanto, como um mestre da existência que Sêneca nos transmite seus valiosos ensinamentos, que valem para qualquer tempo e lugar. Da primeira à última carta, somos envolvidos pelas palavras de um sábio que aprendeu na carne as suas lições, que conheceu de perto o poder e a riqueza, a traição e o exílio e que tomou consciência - da maneira mais difícil - de que quase todas as ambições e pretensões humanas não passam de miragens. Logo na primeira carta, por exemplo, ele nos fala da economia do tempo, de como gastamos boa parte de nossas vidas com tolices e banalidades, jogando fora o nosso bem mais precioso. Para ele, nos iludimos vendo a morte como um acontecimento futuro. Afinal, tudo o que já passou pertence à morte. "Nós morremos todos os dias." Com tom ainda mais enfático, ele anuncia: "Todas as coisas nos são alheias, Lucílio, só o tempo é nosso". Para sintetizar: não é a vida que é breve; nós é que não sabemos aproveitar bem o nosso tempo. Quanto às riquezas, Sêneca não nega que é melhor ser rico que pobre, mas reafirma que a felicidade não pode depender de bens externos nem das vicissitudes da vida. Tudo está sempre em movimento e mudança, e é preciso fortaleza para enfrentar as agruras da existência sem esmorecer. Como Epicuro (constante referência nesse escrito, embora pertença à escola rival), ele pensa que a felicidade depende de nosso estado íntimo. É nesse sentido que Sêneca deseja ensinar que a sabedoria consiste em se submeter à natureza, em considerar-se como mais uma peça na grande engrenagem do mundo. Significa viver em conformidade com as leis naturais, ou seja, significa obedecer à própria razão - uma vez que, para os estóicos, a natureza é racional. Para o estoicismo, o universo não é fruto do acaso, mas regido por uma lógica profunda. Mais do que os temas tratados (a coragem diante da vida e da morte, o desperdício do tempo, a virtude como o supremo bem, o distanciamento necessário do sábio, a filosofia como o lugar onde todas as inquietações se dissolvem), o que mais evidente é o modo como Sêneca passeia por entre vícios e absurdos humanos. Lembrando, mais uma vez, de Epicuro, ele diz que aqueles que não vêem seus próprios pecados não podem se corrigir. E não poder se corrigir é viver à deriva, sem comando da própria existência. Talvez essa seja a lição mais profunda dessa obra: para ter alguma sabedoria nessa vida - ou alguma felicidade - é preciso primeiro ir fundo dentro de si mesmo, é preciso se enxergar para poder corrigir a própria rota. Em suma, a filosofia não serve mesmo para nada - ou, pelo menos, não serve para aqueles que julgam conhecer de cor todos os caminhos enquanto andam às cegas com uma confiança que só a mais profunda ignorância pode proporcionar. Regina Schöpke é filósofa, medievalista e autora de Por Uma Filosofia da Diferença

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.