O cineasta das personagens nobres

O ex-crítico Olivier Assayas fala sobre o inédito Horas de Verão e explica por que precisa de atrizes especiais para seus filmes

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Paris em janeiro, durante os Encontros do Cinema Francês. Les Rencontres são uma iniciativa da Unifrance, organismo que se dedica à promoção do cinema francês no exterior. Durante uma semana, um pouco menos, jornalistas de todo o mundo se reuniram com personalidades - astros, estrelas, autores - para debater os filmes que, ao longo do ano, seriam lançados em seus países. Esse mesmo ?encontro?, agora com o título de Panorama do Cinema Francês, desembarca amanhã no Brasil. São Paulo e Rio verão sete pré-estreias de filmes importantes nos próximos dias. Um desses filmes é Horas de Verão, de Olivier Assayas, que, no ano passado, já havia sido escolhido por Leon Cakoff para a abertura da Mostra Internacional de São Paulo. Olivier Assayas é cinéfilo de carteirinha. Ex-crítico - Cahiers du Cinéma -, ele é coautor, com Stig Bjorkman, de um livro de entrevistas com Ingmar Bergman. Talvez Assayas se identificasse com Bergman por sua preferências pelas personagens femininas. Assayas é casado com Maggie Cheung e, se ele desconstruiu o mito da mulher em Irma Vep, em Clean ofereceu-lhe um papel de viciada tão forte que Maggie foi escolhida melhor atriz em Cannes. Os demais filmes - Demonlover, Boarding Gate e agora Horas de Verão - são pródigos em personagens femininas fortes. Assayas ama as mulheres - de diferentes idades e segmentos sociais. Juliette Binoche talvez seja a alma de Horas de Verão, mas Charles Berling, que vem ao Brasil, Jéremie Renier e o filho de Clint Eastwood, Kyle, têm participações decisivas. Em Paris, Assayas conversou com o repórter do Estado. Seu filme trata de família, de relações, mas na origem surgiu como uma proposta de um museu para que você falasse sobre objetos, obras de arte. Como foi isso? A proposta inicial do Quai d?Orsay era que diretores como Hou Hsiao-hsien e eu participássemos de vídeos com Juliette Binoche. Era um projeto chic. Os artistas vão ao museu, alguma coisa assim. Tínhamos toda liberdade de propor não importa o quê, mas, embora fosse interessante trabalhar com vídeo, o formato curta não me caía bem. Hou transformou o que seria o curta dele no longa A Viagem do Balão Vermelho. Desenvolvi essa história sobre uma mulher que mantém viva a lembrança do tio. Ele era pintor e a família se reúne para celebrar os 75 anos da matriarca. Em seguida, a família tem de se reunir de novo para fazer o luto da morte dessa mulher e também para digerir segredos e dividir a casa e os bens, que incluem o legado e as obras do tio. Não sei se as pessoas percebem, mas, para mim, Horas de Verão é uma espécie de epílogo contemporâneo para Les Destinées Sentimentales, que fiz antes. Escolhi alguns dos mesmos atores, até objetos e locações daquele filme. Mas não se trata de um movimento para trás, e sim para diante. O que me proponho é discutir a arte e também a globalização, a internet. São temas que me interessam. Até por meu casamento com Maggie (Cheung), fiz filmes sobre a cultura oriental. Demonlover é sobre o universo dos quadrinhos eróticos japoneses na internet. É preciso estar atento aos fenômenos que estão mudando a cara da cultura no mundo atual. Existe uma intriga que parece simples em Horas de Verão, mas ela vai se ampliando para abarcar as diferentes gerações de uma família. Isso é absolutamente intencional, mas não foi uma coisa fácil de atingir. Comecei pela simplicidade, porque a história, afinal, era para ser um curta. E já que se tratava da proposta de um museu, os objetos eram essenciais, não só as pinturas, mas o mobiliário. É interessante que, quando objetos encerram seu ciclo com os humanos, muitas vezes eles vão parar nesses cemitérios que são os museus. Mas eu queria que eles fossem vestígios de vidas. Comecei a construir histórias em torno desses objetos, elas me levaram aos personagens, que tinham vidas próprias. O que parecia simples começou a se complicar. As interações ficaram mais complexas, entre as pessoas e os objetos, entre culturas. Como dar unidade a tudo isso? Era, sem dúvida, o desafio. A unidade de Horas de Verão vem de um estilo, um tom e um pouco mais do que isso. São duas coisas muito ligadas, a luz e a leveza. Como estou falando de verão, me pareceu importante usar uma espécie de background impressionista, mas como a história é de família, de pessoas e objetos com seus vínculos, muitas vezes dolorosas, era preciso alcançar também certa leveza, para que as coisas não ficassem muito sofridas. Desde o princípio, percebi que não conseguiria ficar imune às emoções que estão sob a superfície desse filme - e de seus personagens -, mas o que eu não sabia é que ia perder minha mãe, a poucos meses do início das filmagens e, portanto, Horas de Verão virou uma espécie de luto. A carga dramática cresceu e poderia ter se tornado insuportável, mas uma coisa eu sempre tive clara: não queria ser nostálgico. Por mais que, como cinéfilo, eu admire grandes autores do passado, abomino essa noção de que as coisas, na arte e na vida, eram melhores antes. Tenho confiança no futuro e isso se reflete no formato do filme, nessa espécie de fatalidade que acompanha a lógica do processo da vida e que tem, obviamente, a ver com destruição. As coisas precisam, ser destruídas para se reconstruir. Acho que é uma boa síntese para Horas de Verão. Todo o final do filme remete à força da juventude. A música torna-se importante. Creio que a música é sempre importante nos meus filmes, até quando me imponho um certo silêncio. Mas todo esse final com os jovens, a festa que eles fazem na casa, tudo tem a ver com esse ciclo da destruição a que me referi. Juliette Binoche está maravilhosa... Não é mérito meu. Juliette, Maggie, Asia Argento (em Boarding Gate), todas as atrizes com quem trabalhei são maravilhosas e isso é mérito delas. Sou um apaixonado pela força e magnanimidade das mulheres. Preciso de atrizes especiais para colocar isso na tela. O que Juliette traz para o papel é a riqueza de sua persona. Não tem preço.

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