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O choro de uma flauta pioneira

Em livro, historiador André Diniz realiza debate atualizado sobre Joaquim Callado

Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

Joaquim Antônio da Silva Callado, o Calladinho, é considerado o pai do choro. Embora a afirmação seja passível de questionamentos, é difícil localizar outro músico, no Rio da segunda metade do século 19, com a importância de Callado para o surgimento do choro, gênero urbano que fundiu a polca européia ao lundu africano. Ele criou o conjunto Choro Carioca nos anos 1870, com a seguinte formação: uma flauta, um cavaco e dois violões. A flauta solista de Callado, feita de ébano e acompanhada pelos violões, dispensava então os arranjos do piano. Com base nessa constatação, o historiador André Diniz escreveu Joaquim Callado: O Pai do Choro (Jorge Zahar, 148 págs., R$ 38). Na obra, Diniz promove um ''debate contemporâneo'' sobre as poucas fontes de informação referentes ao flautista que nasceu há 160 anos (julho de 1848) e morreu em 1880 (viveu apenas 32 anos). Segundo Diniz, Joaquim Callado pode ser considerado o músico mais popular da segunda metade do século 19. O autor da polca A Flor Amorosa é citado em texto de escritores da época como Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto. ''Eu pretendi dar vida ao Callado'', diz o historiador. As escassas informações sobre o chorão carioca fizeram André Diniz dar ênfase ao contexto histórico-musical do Rio do século 19 para, assim, conferir ''musculatura'' ao perfil do flautista. ''Eu passava três meses pesquisando na Biblioteca Nacional para encontrar apenas um parágrafo que citava o instrumentista'', diz. André Diniz baseou suas pesquisas sobretudo no material produzido pela pioneira Mariza Lima e pelo maestro Baptista Siqueira. Nos anos 1960, o musicólogo Baptista Siqueira, segundo Diniz, foi um dos primeiros pesquisadores a apontar, ''numa exposição simplória'', o pioneirismo de Joaquim Callado como o criador dos grupos de choro, embora também destacasse a importância do flautista Viriato Figueira (1851-1883), amigo de Callado, na formação do ''quarteto ideal'' do choro, com uma flauta, dois violões e um cavaquinho. Para comprovar que as composições de Callado tinham características do choro, o maestro elegeu a polca Perigosa. Mas não há certeza sobre se essa polca é mesmo do flautista. Quem questionou a autoria foram Anna Paes e Maurício Carrilho, que encontraram Perigosa no arquivo de Donga, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Quando fez os seus estudos sobre Callado, um mestiço, nos anos 1940, a folclorista Mariza Lima estava sob o impacto do lançamento, na década anterior, de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Em seus textos, Mariza argumentava que as qualidades mestiças do flautista, características da ''nova raça'', são o alicerce de suas criações inovadoras. No ensaio A Característica Brasileira nas Interpretações de Callado, ela escreveu que o flautista ''reunia em si a ancestralidade musical, a influência do meio e a tendência da raça''. Mariza buscava nos contornos melódicos criados pela flauta do pai do choro algo que revelasse as estruturas de um ''ser brasileiro''. No mesmo artigo, ela apontou a luta de Callado para superar a tradição, sinônimo de submissão ao ''molde estrangeiro'', num momento em que o paradigma civilizatório europeu estava na ponta da língua dos homens que comandavam o País. Embora houvesse setores da elite nacional que aceitavam a cultura das camadas desfavorecidas, outros segmentos - amplos - se escandalizavam com a influência dos ritmos africanos, que tinham de ser enquadrados por um discurso civilizador e europeizante. Joaquim Callado é uma mostra desse ambiente dividido: ele tocou tanto para festas da corte, às quais comparecia D. Pedro II, como para festejos em casas, onde o pagamento aos músicos era a permissão de comer e beber - e ai da casa onde não tivesse os comes e bebes. Terceiro professor da cadeira de flauta do Conservatório de Música - a única escola pública musical do País, criada em 1848 -, Callado recebeu das mãos do imperador a Ordem da Rosa, uma das mais distintas comendas do Império. Nas casas populares e nos chamados arranca-rabos, segundo Diniz, Joaquim Callado exercitou sua linguagem musical à base da espontaneidade e da liberdade de improviso. Aluno do maestro Henrique Alves de Mesquita - o professor dos chorões do século 19 - e capaz de ler música, Callado deu um sabor especial às suas 66 composições ouvindo o som criado nas ruas, características que ele tanto aproveitou no ato de compor quanto no de interpretar. Sem amarras, ele brincava com a melodia produzida por sua flauta, ''derrubando'' os cavaquinistas e violonistas que tentavam acompanhá-lo. ''A novidade é que a sua flauta soube dialogar com os outros instrumentos'', afirma Diniz. ''Pois essa espontaneidade se perdeu a partir dos anos 1970, quando começa a haver um compromisso com o profissionalismo'', diz André Diniz. Embora a profissionalização do choro seja detectável com a aparição da indústria fonográfica e do rádio na primeira metade do século passado, André Diniz afirma ter surgido há 30 anos, ao mesmo tempo que o choro era resgatado, tendo até festivais exclusivos para o gênero, o ''músico estudioso, que se debruça sobre a linguagem musical e que vive da música''. ''Perdeu-se o aprendizado nas rodas, que eram as principais formadoras dos chorões, e não as escolas de hoje, como a Escola Portátil do Rio e a Escola de Choro Raphael Rabello, em Brasília'', afirma. Segundo Diniz, a profissionalização trouxe ''coisas boas e ruins''. Biografia JOAQUIM ANTÔNIO DA SILVA CALLADO: Nascido no Rio de Janeiro em 1848, Callado recebeu a influência do pai, também Joaquim, que atuou como professor de música, tocou cornetim e trompete e foi regente da Banda Sociedade União de Artistas. Foi aluno do maestro Henrique Alves de Mesquita, com quem aprendeu regência e composição, mas foi ouvindo o som das ruas que Callado pôde abrasileirar a execução de instrumentos e gêneros musicais europeus. Ele usava pince-nez, gravata-borboleta, tinha bigode e repartia o cabelo em dois, bem no meio do cocuruto. Foi professor do Conservatório de Música, única escola pública musical do período. Segundo o historiador André Diniz, ele foi precursor de flautistas como Patápio Silva, Benedito Lacerda, Pixinguinha e Altamiro Carrilho. Fundou o primeiro grupo de chorões, o Choro Carioca, nos anos 1870, com a formação de uma flauta solista, um cavaco e dois violões. Compôs 66 obras, entre polcas, quadrilhas, lundus e valsas, sendo A Flor Amorosa a mais gravada e executada. Seu pioneirismo, segundo pesquisadores, aparece nos títulos bem-humorados que dava às composições, prática que se fez tradição no choro. Entre os exemplos estão Ai, Que Gozos, Mariquinhas, Cruzes, Minha Prima e Como É Bom. Ele morreu em 1880, aos 32 anos. QUAL A SUA OBRA MAIS GRAVADA E EXECUTADA? A FLOR AMOROSA: Não há registros de gravações de músicas tocadas por Joaquim Callado, que foi gravado por Ernesto Nazareth, um belo elogio, uma vez que o pianista só gravava as próprias obras. Segundo André Diniz, nem Pixinguinha nem Benedito Lacerda, ambos flautistas, gravaram Callado, que apareceu depois em discos de Altamiro Carrilho (Altamiro Carrilho e Sua Bandinha, 1957) e Carlos Poyares (Revendo com a Flauta os Bons Tempos do Chorinho, 1977). Entre as 66 composições de Callado, a mais gravada e executada é A Flor Amorosa, com letra de Catulo da Paixão Cearense, considerado por Diniz ''o primeiro letrista do choro''. Ela foi gravada pela primeira vez pelos Irmãos Eymard, em 1902. O primeiro registro com a letra de Catulo surgiu em 1914, na voz de Aristarco Dias Brandão. A confirmação de A Flor Amorosa no repertório chorístico vem com a versão de Jacob do Bandolim, em 1949. A polca apareceu, na interpretação de Francisco Carlos, de 1958, no filme Esse Milhão É Meu (Carlos Manga) e, na voz de Maria Martha, na novela Nina, da Rede Globo, em 1977. Em 1989, o pianista Arthur Moreira Lima e o violonista Turíbio Santos a incluem em Brasil, Piano e Violão. O cavaquinista Henrique Cazes gravou a composição, em 1999, no CD Choro 1900. O instrumentista Sebastião Vianna está lançando o CD Sebastião Vianna interpreta Joaquim Callado, com 13 músicas, entre elas A Flor Amorosa.

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