O cheiro das emoções

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Por Ignácio de Loyola Brandão
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Desde sábado, Letícia, minha sobrinha, estava nervosa. Consultou a internet dez vezes para certificar-se do horário do vestibular, com pavor de acontecer aquilo que sempre vemos na televisão: o portão fechado na cara do retardatário. Jornalistas adoram esse momento, a expressão de frustração, raiva e impotência. Nada disso aconteceu, infiltrei em Letícia a minha ansiedade e assim chegamos hora e meia antes. Com essa ansiedade, deixo minha mulher louca, chego a um aeroporto três horas antes, pego o cartão de embarque e morro de tédio, mas não perco avião. Domingo, portas da PUC na Rua Ministro Godoi ainda fechadas. Pouca gente quando esperávamos uma multidão. Listas de nomes coladas nos muros, localizamos a sala, buscamos uma sombra, nos abrigamos sob a tenda de um cursinho. Calor, tudo abafado. Clima de apreensão e entusiasmo. Todos os cursinhos por ali e também representantes das universidades. Como tem universidade particular neste Brasil! De algumas nunca ouvimos falar. Distribuíam folhetos, provas simuladas, água, cadernos, réguas, lápis, canetas. Rondavam todos os tipos de vendedores, desde águas e refrigerantes a Gatorade, Red Bull, frutas, maçãs, bolachas. Os bares em volta cheios, muitos comendo lanche, afinal, seriam cinco horas de provas, em nenhuma mesa vi cervejas, todo mundo querendo a cabeça limpa. Um vendedor circulava com uma caixa de BICs pretas, anunciando: "A única caneta que tem experiência de vestibular. Ela faz a prova sozinha. Basta colocá-la em cima das questões, ela sabe tudo, conhece tudo. A caneta dos que serão aprovados." Mesmo com essa conversa bem-humorada não parecia vender muito, todo mundo chega equipado. Um vestibulando dizia ao amigo: "Trouxe compasso, transferidor, tudo o que pediram, só que não sei usar. Você tem idéia? Me ajuda?" O que ensinam os cursinhos? Nessa hora, lembrei-me das provas de fim de ano no colégio em Araraquara. Tempo de exames, os jardins, principalmente o da Independência, ficavam superlotados, havia disputa de bancos. Quente, tudo muito quente, o cheiro da vegetação era forte, sufocava. A turma passava a noite estudando, querendo aprender o que não tinha aprendido o ano inteiro. Decoravam e faziam colas. Corriam também paqueras. Não havia um só que não tivesse o tubinho de Pervitin, comprimido mínimo e poderoso, era tomar e ficar na maior. Comprava-se na farmácia, não precisava receita. Na época de provas, as farmácias renovavam estoques. Pervitin era fácil de ser comprado, difícil era camisinha. No fim dos anos 50 apareceu o Dexamyl, mais forte, um coraçãozinho azul que nos deixava turbinados. Igrejas cheias, outra indicação de que era tempo de provas. Aquele bando que nunca se dirigia a Deus para nada, passava de altar em altar, e rezava para São José, Santo Antônio, São Judas, São Gabriel, São Benedito, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Santo Expedito, o das causas impossíveis, ainda não havia sido descoberto. Todos faziam promessas mirabolantes jamais cumpridas. Parece que Deus, absolvendo os jovens, atendia a maioria, esperando conquistá-los para o seu rebanho. Hora do exame. Cheios de angústia, esperávamos a chegada do inspetor de alunos, presença temida que nos deixava tensos, mãos geladas. Era o pai do hoje jornalista Marco Antonio Rocha, editorialista do Estadão. Olhares atentos, bocas secas. Rocha apanhava uma garrafinha de ráfia e dela retirava um número, como se fosse tômbola. Entregava ao professor, estava dada a partida. As classes eram pequenas, os professores atentos. Nem pensar em olhar de lado, virar para trás, conversar, passar a cola. Havia quem colava descarado, eram admirados, afinal, gostaríamos todos de ser contraventores. Terminada a prova, a reunião era na frente do colégio. Os pobres iam comer pão com molho de tomate na lanchonete do Chafih, o Rei Momo mais magro de toda a história do carnaval brasileiro. Os abonados (como o Fabiano, o Mingo Ferrari, o Gadelha, o Hugo Fortes, o Gilberto Supo, o Peri Medina, o Alberto Haddad) preferiam o Oguri, para o cachorro-quente ou o misto com Mimosa Ciomino, refrigerante local. Hambúrguer? Só em filme americano. As imagens desaparecem, volto à porta da PUC. Abertas as portas , fomos dos primeiros a entrar em busca da sala. Maria Rita, minha filha, que estudou ali e conhece os meandros, escadas, corredores e rampas, foi na frente. Eu lembrando às vezes em que aparecia nas aulas de Cecília de Almeida Salles para debater com alunos. Achamos a sala, Letícia foi a primeira a se inscrever, achar sua carteira, a 37, a última no fundo. Nessa altura, subiam todos os candidatos e me admirei ao ver que havia uns trintões e quarentões, lápis e caneta na mão, olhares trêmulos. Os mais tranqüilos - todos notamos - eram os japoneses, que subiam rindo e tinham o olhar calmo, o jeito descontraído. Vai ver cruzamos com alguns daqueles que depois aparecem nos anúncios: o primeiro classificado é de tal cursinho. Nessa hora, senti um cheiro curioso no ar. Adrenalina tem cheiro? Podia-se vê-la em suspenso na atmosfera. Na saída, vimos o trânsito congestionado, marronzinhos apitando, mães se despedindo e dando os últimos conselhos. Logo as ruas estavam cheias, comecei a entender. A grande maioria chega em cima da hora. Quase, por sadismo, pensei esperar para ver as portas se fechando na cara dos atrasados. Para quê? O domingo estava tão bonito, havia alegria no ar, excitação. Por um instante fiquei aliviado, não vou mais passar por isso. No minuto seguinte, pensei: gostaria de passar de novo por tudo, há emoções que se vão, nunca mais são recuperadas. PS: Somente depois de deixar a PUC pensei na coincidência (acaso ?) de a carteira 37 da sala 42 ter o mesmo número que a minha Cadeira na Academia Paulista de Letras. Seria um sinal?

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