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O Brasil, por Rosa e Machado

Luiz Roncari mostra em coletânea o descompasso da modernização do País

Por Alcir Pécora
Atualização:

O Cão do Sertão - Literatura e Engajamento reúne artigos de Luiz Roncari produzidos entre 1992-2007. Os textos mais recentes ocupam a primeira metade do livro e se concentram no exame da obra de Guimarães Rosa; a outra metade é, na maior parte, dedicada a Machado de Assis. O conjunto dos textos é regulado pelo esforço de articulação entre os procedimentos compositivos das obras e os processos históricos do país. A história dos valentões, de Rosa, por exemplo, não se dissociaria da história do Estado, posterior a 30, quando este começava a estender a sua presença para o sertão, até então entregue ao banditismo e aos grupos privados regionais. Nessa direção, Roncari busca representações de personagens históricas como Antônio Conselheiro e Getúlio Vargas, no Grande Sertão: Veredas. E as acha: o primeiro, identificado com o velho ''''quase-doido'''' que aponta a Riobaldo onde estaria enterrado um tesouro; o segundo, com o fazendeiro Seo Ornelas, nome que ressoa o sobrenome materno de Vargas, ''''Dornelles''''. A fazenda, ''''Barbaranha'''', remeteria, por sua vez, a Oswaldo Aranha, líder político associado a Getúlio, e a Rui Barbosa, cujo ideário civilista estaria em oposição à ação tribal dos bandos de Ricardão e Hermógenes, aos quais Roncari associa à doutrina militarista de Pinheiro Machado e Hermes da Fonseca. Não se trata, contudo, de propor uma identificação simplista de personagens isoladas, mas sim de descobrir no eixo das obras de Rosa, como nas de Machado, os descompassos da modernização de uma sociedade de extração escravista. Um desses descompassos, para Roncari, é a tripartição especializada da vida amorosa, na qual se reconhece o amor sexualizado da amante; o amor da esposa, associado à descendência e ao reconhecimento institucional; e, entre eles, um amor mais ''''ambíguo e humano'''', relativo ao convívio intelectual, preenchido não por mulheres, mas pelo amigo de confidências. Para o crítico, sinal de uma referência mais aos costumes que à metafísica, a tripartição encarna as práticas do patriarcalismo brasileiro, e constitui uma espécie de fundo comum da trama romanesca. A última parte da seção fecha com o enfrentamento do artigo de Roberto Schwarz, Grande Sertão e Dr. Faustus, o qual, comparando os dois romances, conclui pela pouca interferência da história nas ações e dilemas do primeiro, cuja passagem do regional para o âmbito do destino humano é ''''imediata'''', fato que ''''desobriga o autor de qualquer realismo, pois o compromisso assumido pouco se prende à realidade empírica''''. A passagem é incômoda para Roncari, tanto por Schwarz representar um dos paradigmas da crítica que lhe interessa, quanto por intuir que essa avaliação representa uma forma de diminuir o interesse do livro. Em defesa de sua posição, Roncari deixa ao ''''tempo'''' a tarefa da revelação de que ''''Grande Sertão é em tudo, história'''', com ''''dimensão mimética e realista mais forte do que se tem visto''''. Para ele, o que Rosa representa no Grande Sertão é o ''''drama do Brasil, na vida pública e privada, captado num momento de grandes indefinições, quando ainda os dois ventos contrários, o da tradição dos costumes e o da civilização das instituições importadas, trombavam com a mesma força...''''. De todo modo, se o tempo não parece inclinado a lhe dar razão, não deixa de ser admirável o tour de force demonstrativo, elucidativo em suas partes, ainda que pouco plausível no desfecho. Pois bem, se esse tour de force exigia, a propósito de Rosa, uma interpretação histórica a equilibrar o romanesco, na segunda seção do livro, dedicada a Machado, Roncari faz o inverso, isto é, destaca a relevância do romanesco na estruturação da crítica realista dos seus romances. Começando por um estudo de Memorial de Aires, afirma que o romance pede uma leitura alegórica, que se dá como inversão do mito de Fausto, na qual Aires faz as vezes de ''''bom diabo''''. Ademais, considera que Machado, no Memorial..., está mais próximo do narrador do que nos demais romances. No estudo seguinte, contrapõe o conto O País das Quimeras, de 1862, em relação à reescritura que sofre, em 1866, quando passa a se intitular Uma Excursão Milagrosa. Três mudanças chamam a sua atenção: a do título, que se afasta do alegórico; a da terceira para a primeira pessoa, de modo que o herói se torna o único responsável pelo dito; a acentuação da lição de prudência ao final, na qual se afirma a vantagem de dissimular certas críticas, para fugir à retaliação dos atingidos por elas. Tal lição, para Roncari, deve ser entendida não apenas como ''''moral'''' para o leitor, mas como ''''poética de ocultamento'''' para o autor. Aventa a hipótese de Machado ter aprendido tal poética com Edgar Allan Poe, autor do qual foi tradutor. O seu método se baseia no envolvimento do leitor num jogo de esconder e revelar, cujo primeiro princípio é a desconfiança, pois tudo pode ser o contrário do que parece, e o segundo é o reconhecimento da importância da aparência. Assim, no melhor Machado, o olhar do leitor é deslocado da ''''condição do humano na vida histórico-social'''' para o ''''divertimento do romanesco na ficção''''. Trata-se, pois, de elaborar a representação da vida social por meio de uma técnica de desvio, que excita a curiosidade do leitor, ao mesmo tempo em que oculta e afia a crítica do autor. Daí o ''''escorregadio'''' dos seus textos, que supõe devido não apenas à versão subjetiva e deformada do narrador, acentuada nas leituras posteriores à de Helen Caldwell, mas também a essa escritura na qual os aspectos realistas são dissimulados no romanesco. O procedimento acentuaria a contradição do país preso à economia escravocrata que se vestia com os trajes modernos de uma democracia burguesa, apostando num processo de acomodação, no qual as forças históricas não se resolvem para lado nenhum. Enfim, O Cão do Sertão é um livro que, em tudo, valoriza o exercício da crítica séria, que sabe ler as obras com categorias adequadas, bem como dialogar com os seus melhores leitores. A única nota fora é a maneira desdenhosa como Roncari se desencarrega de ler os estudos de Abel Barros Baptista, por conta do argumento de que ''''no que foi exposto na entrevista (à Folha de S. Paulo)'''', ''''não se observa um passo à frente no estudo da difícil relação da obra de Machado com o universo literário e cultural de que faz parte''''. Sendo o crítico português autor de dezenas de ensaios sobre a obra de Machado, ao longo de toda uma vida intelectual, não tem cabimento a desqualificação de seus estudos em função apenas do que disse ou não disse numa entrevista de circunstância, por mais dura que tenha sido a crítica dirigida por ele aos paradigmas interpretativos admitidos por Roncari. Mas fica isso como dissonância de uma nota irritadiça solitária, que não desmerece a consistência do conjunto.

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