O Bertolucci que poucos conhecem

A Estratégia do Sonho exibe no CCBB 11 longas de ficção do diretor que nunca tiveram carreira regular nas salas de exibição

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Em depoimento a Joel Pizzini, curador da retrospectiva em sua homenagem, Bernardo Bertolucci diz que o título não poderia ser mais apropriado - A Estratégia do Sonho. "A única diferença entre ir ao cinema e sonhar é que no primeiro estamos de olhos abertos e no outro, de olhos fechados." No mesmo depoimento, Bertolucci ainda recorda dos laços de amizade que manteve com o pessoal do Cinema Novo - Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl, entre outros - nos longínquos anos 60. Porque é desses anos, em especial, que trata essa mostra que começa hoje no Centro Cultural Banco do Brasil e segue até o dia 4 de janeiro. A Estratégia do Sonho - O Primeiro Cinema de Bertolucci traz, em cópias de 35 mm, obras pouco conhecidas de sua filmografia, algumas das quais lançadas apenas em DVD, mas que nunca tiveram carreira regular nas salas de exibição. Entre elas A Morte (1962), Antes da Revolução (1964), Partner (1968) e A Estratégia da Aranha (1970). Além dos longas-metragens de ficção, haverá documentários e mesas de debates sobre a obra do diretor. Uma atração extra é a exibição do documentário de Bertolucci O Caminho do Petróleo (1967), recém-recuperado, exibido no Festival de Veneza deste ano. Bertolucci acompanha uma equipe italiana de exploração petrolífera no Irã e traça o caminho do petróleo, das regiões produtoras até a rica Europa, que o consome. Outro documentário raro é A Saúde Está Doente (1971), um libelo contra o precário estado do sistema de saúde pública italiano naquela época. Ao todo são 11 filmes assinados pelo homenageado e um documentário que aborda a sua obra - Bernardo Bertolucci: Para Que Serve o Cinema?, de Sandro Lai, realizado para a TV. Dois filmes, em particular, devem chamar muito a atenção nessa retrospectiva, pois há muito não são exibidos em cópias em 35 mm no País - O Último Tango em Paris (1972) e 1900 (1976). Foram grandes sucessos do diretor, que já então saía do âmbito italiano e realizava produções internacionais com atores de prestígio. Em O Último Tango, como se sabe, o protagonista é Marlon Brando, viúvo atormentado pelo suicídio da sua mulher, em busca de consolo no sexo compulsivo com uma garota francesa (Maria Schneider). O filme, com suas cenas famosas, ficou proibido no Brasil durante a ditadura militar. Foi saudado por uns e tachado por outros como transgressor e, quando liberado, acabou decepcionando quem nele buscava apenas cenas de sexo. A sua intensidade, porém, está em outra parte e o sentimento de angústia existencial do personagem é que domina a história e não o seu erotismo, também interessante, é bom que se diga. Já 1900 (Novecento, no original) é um épico histórico com dois protagonistas, o francês Gérard Depardieu e o norte-americano Robert De Niro nos papéis principais. A idéia é fazer uma retrospectiva histórica da Itália, com as idéias que se combateram entre si, do início do século até o final da 2ª Guerra Mundial, através da vida de duas pessoas, o filho de camponeses Olmo (Depardieu) e o rico Alfredo (De Niro). Contrastes de visões de mundo, classes sociais e idéias políticas. Cheio de charme e intensidade. Estes são os filmes do Bertolucci já mundialmente conhecido que é sempre bom rever. Mas talvez o interesse maior da mostra seja revelar, ou rememorar, o Bertolucci dos anos de formação. Daí a importância de A Morte (La Commare Secca), sua estréia no cinema em parceria com Pier Paolo Pasolini, que escreveu o roteiro. O assassinato de uma prostituta permite ao cineasta fazer uma reflexão sobre a verdade e as versões possíveis sobre um mesmo caso. A referência, claro, é a Rashomon, de Akira Kurosawa, um estudo de perspectivas que virou referência no cinema. Antes da Revolução foi também um filme que marcou época, pois o personagem Fabrizio se encontra dividido entre a sua vontade de intervenção política e as críticas internas que fazia à esquerda de sua época. Quer dizer, um personagem que resume os principais dilemas da época. Um amor conturbado pela tia perturba também as opções de Fabrizio. Dado que não poderia faltar, pois em Bertolucci o político não aparece quase nunca como um dado isolado, depurado da totalidade do indivíduo. O indivíduo pode ser cérebro e coração político, mas também é carne e osso, sensual e sofredor. Deste filme ficou famosa a frase "quem nunca sentiu a sensação da véspera de uma revolução não sabe o que é viver". A revolução era, também, uma sensação e uma aspiração existencial. Partner merece atenção como o filme em que talvez Bertolucci tenha sido mais experimental em termos de narrativa. Livre adaptação de O Duplo, de Dostoievski, conta a história de Jacob, estudante engajado politicamente que passa a conviver com o alter ego que lhe cobra comprometimento ainda maior. Marx, Freud, Godard estão entre as referências e influências deste filme que reflete sobre a questão política da geração 68, com seus paradoxos e ambigüidades. Bertolucci continuaria a se ocupar de política nos filmes seguintes, O Conformista e A Estratégia da Aranha, o primeiro adaptado de Moravia, o segundo de Borges. São duas reflexões sobre o fascismo, tema obsessivo em certa fase do diretor. Mas, atenção, como se disse, a política nunca vem de maneira maniqueísta e sim mesclada a tudo o que leva o indivíduo para o lado do irracional. É sempre um Marx, mesclado a Freud, que parece influenciar o pensamento do diretor. Por exemplo, em O Conformista, de 1970, o fator homossexual infantil parece desdobrar-se na inclinação fascista da maturidade. Mas também não se trata de um reducionismo, porque, mesmo levando em conta o aspecto psicológico, os dados históricos não se reduzem a uma espécie de manifestação menor do aspecto pessoal, como quer certo psicologismo ingênuo. Em outras palavras, Bertolucci jamais despolitiza o político nem torna intemporal aquilo que é histórico. Quando deseja ir diretamente ao psicológico, ou mesmo ao psicanalítico, ele o faz sem subterfúgios, como neste profundamente edipiano La Luna, sobre o relacionamento entre uma cantora de ópera (Jill Clayburgh) e seu filho adolescente. Profundo e corajoso, Bertolucci não hesita em chegar ao incesto nessa história de amor terminal, que não deixa de passar pelo desafio contemporâneo do consumo de drogas. Em todos esses filmes, ou quase todos, Bernardo Bertolucci, filho do grande escritor Attilio Bertolucci, alcança uma dimensão poética rara no cinema contemporâneo. Diga-se: uma poética dura, poética política, do real e dos homens, com suas grandezas e imperfeições. Serviço Estratégia do Sonho - O Primeiro Cinema de Bertolucci. Hoje, 18h30, Carta a Bertolucci (1993), de Marcos Jorge; Bernardo Bertolucci - Pra Que Serve o Cinema? (2002), de Sandro Lai; 19h30, Debate. Amanhã, 17h30, A Saúde Está Doente (1971), Bernardo Bertolucci - Pra Que Serve o Cinema?; 19h30, A Morte (1962), de Bertolucci. CCBB. Sala de Cinema (70 lug.). R. Álvares Penteado, 112, Centro, 3113-3651, metrô São Bento. R$ 4. Até 4/1

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