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O ''belo caos'' de Guinle chega maior a São Paulo

MAM abre hoje exposição do pintor com mais obras que em Porto Alegre

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Uma concepção equivocada que os ouvintes bissextos de jazz têm da improvisação é que ela nasce do nada, simplesmente porque os músicos não têm à frente uma partitura. No entanto, o jazz, a exemplo de qualquer linguagem, tem gramática e vocabulário próprios, assim como a pintura. E nenhum pintor brasileiro contemporâneo conhecia tão bem essa sintaxe como Jorge Guinle (1947-1987), que tem sua primeira retrospectiva aberta, a partir de hoje, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). A mostra, Jorge Guinle: Belo Caos, com curadoria dos críticos Ronaldo Brito e Vanda Mangia Klabin, esteve em cartaz na Fundação Iberê Camargo até novembro do ano passado e chega a São Paulo um pouco maior que a exposição gaúcha: são 52 trabalhos no total, entre 34 pinturas e 18 desenhos, todos guardando esse aspecto espontâneo do improviso mas insinuando certa reverência à ordem. Como dizem os músicos de jazz, as mais belas improvisações soam como composições e as mais belas composições parecem música improvisada. Guinle, a exemplo do pai playboy, adorava jazz. E seguiu à risca o conselho de Duke Ellington: "Você tem de arranjar um jeito de dizer as coisas sem dizer." O "belo caos" de Guinle foi construído em apenas sete anos de carreira, justamente numa década (a de 1980) em que o mundo redescobria a pintura, depois de um longo período de ditadura da arte conceitual - época que testemunhou o renascimento da técnica na Alemanha (com os neoexpressionistas ou "novos selvagens") e na Itália (com a transvanguarda). Guinle, um pintor erudito, formado nos museus europeus e americanos, arranjou um jeito de dizer o que tinha a dizer sem se filiar a nenhum movimento, nem mesmo à chamada Geração 80 - assim chamada por conta de uma exposição, da qual participou, em julho de 1984, no Parque Lage (RJ), que reuniu 123 artistas emergentes. Guinle sempre esteve mais próximo do gaúcho Iberê Camargo, defende o crítico Ronaldo Brito. Nuno Ramos, outro gigante dessa geração, escreve no catálogo da exposição que, mesmo essa influência "deixa-se ver e submerge novamente no movimento da pintura", isto é, torna-se abstrata porque apaga todos os rastros, tanto da sua primeira influência, Matisse, como da última, Iberê Camargo, passando por De Kooning, Pollock e outros guias que seguiu ao longo da curta carreira de sete anos, iniciada quando sofreu o impacto da pintura de Philip Guston na Bienal de 1981, justamente um artista que deglutiu e incorporou a herança pictórica americana, adaptando-a a uma visão transicional que abalou o olhar de Guinle. Mas foi na Bienal de 1983 que o artista, segundo o curador Ronaldo Brito, chegou à maturidade: "As pinturas ganham, então, a escala de neoexpressionistas como Lüpertz e Penck, descontadas as óbvias diferenças entre eles." Alguns dos 13 óleos exibidos na mostra internacional foram reunidos na retrospectiva do MAM, como Aquário, O Riacho e Ulisses. São títulos simples se comparados aos que fazem alusão ao amplo universo cinematográfico e literário de Guinle, em que cabiam tanto Rimbaud como Antonioni e, claro, seus ícones da pintura. Lembro que, em 1986, numa de suas últimas exposições, na Galeria Luisa Strina, chegamos à conclusão que tanto as cores como a composição da tela lembravam assustadoramente o quadro de Watteau que está no Louvre (Pélerinage à l?Île de Cythère, 1717), sobre casais que esperam o embarque para a ilha do amor - ou desembarcam dela. Guinle não teve dúvidas. Batizou o quadro na hora de L?Embarquement pour Cythère. Morreria um ano depois em decorrência de complicações advindas da aids. Segundo Ronaldo Brito, Guinle relativiza o cânone da arte moderna. Faz o que a curadora Vanda Klabin define como "desconstrução amistosa" da arte. Guinle, ainda de acordo com Brito, refere-se à história da arte de modo não ofensivo, mas com uma carga de agressividade "que não era típica da arte brasileira". Sua ação, diz o crítico, foi desinibidora. "Ele trouxe a história metabolizada por uma experiência visual num país em que a arte foi sempre inibida por palavras de ordem." Serviço Jorge Guinle: Belo Caos. MAM. Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n.º, portão 3 do Parque do Ibirapuera, 5085-1300. Das 10 h/18 h (fecha 2.ª). R$ 5,50 (dom., grátis). Até 22/3. Abertura hoje, às 20 horas

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