''O autor só é livre para criar se é pago pelo que faz''

Jean-Claude Carrière: escritor e roteirista; Colaborador de diretores como Buñuel, Malle, Tati e Babenco, Carrière fala de direitos autorais e vê futuro com pessimismo

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Por Diego Viana e PARIS
Atualização:

O francês Jean-Claude Carrière é romancista, dramaturgo, poeta, desenhista, ator, historiador, cineasta e professor. Mas seu nome é reconhecido como roteirista de filmes como A Bela da Tarde, A Insustentável Leveza do Ser e Cyrano de Bergerac. Para ele, o roteirista é também um cineasta, embora o roteiro seja atirado ao lixo no fim da filmagem. Sem conhecer em profundidade a linguagem do cinema, é impossível escrever roteiros. Por isso, o dedo de Carrière está por trás de muitas obras-primas dos últimos 50 anos, em parceria com Luis Buñuel, Milos Forman, Jacques Tati e Louis Malle, entre outros. Com Hector Babenco, assina o roteiro de Brincando nos Campos do Senhor, de 1991. Ele também é dono de uma prolífica produção em teatro. Escreveu A Controvérsia de Valladolid, que foi montada no Rio de Janeiro por Paulo José em 2000. É autor da adaptação teatral do Mahabharata, poema épico indiano levado aos palcos pela trupe de Peter Brook em 1985. Esse projeto, que levou 11 anos para ser concluído, é aquele de que Carrière mais se orgulha. Aos 78 anos, ele não pensa em se aposentar. Trabalha na adaptação do romance Syngué Sabour, de Atiq Rahimi, vencedor do prêmio Goncourt em 2008, e acaba de lançar na França seu 26º livro, o Dicionário Amoroso do México. Carrière visitou o país dos astecas pela primeira vez em 1964, com o cineasta Louis Malle. Apaixonou-se e, desde então, viaja para lá todos os anos. Fundador e presidente de 1986 a 1996 da Femis, principal escola de cinema da França, Carrière atua na defesa dos direitos autorais. Foi diretor da SACD, sociedade arrecadadora francesa, onde organizou grupos de estudo sobre técnicas digitais de difusão de conteúdo. Os resultados, diz, foram inconclusivos. Ele considera a transferência gratuita de arquivos pela internet um risco para a liberdade do artista. "Não haverá mais produção contemporânea independente", teme. Entre uma viagem a Cannes e outra para a Índia, Carrière recebeu o Estado em sua casa parisiense, decorada com obras de arte recolhidas nos muitos países que o roteirista já visitou. "Gosto muito de viajar e trabalho bem em viagens. Levo sempre uma miniatura do escritório na mala." Como o mexicano está reagindo à epidemia de gripe? É um povo muito ligado à tragédia e à morte. Então, eles têm um curioso orgulho de sua gripe: ela começou aqui! É nossa gripe! Sem esquecer da rivalidade com a Colômbia, que os leva a provocar: nossa gripe é mais mortal do que as deles! É claro que eles buscam se livrar dos riscos. Mas, em vez de pânico, produzem esse orgulho. Em sua primeira viagem ao México, o sr. se sentiu envergonhado por desconhecer a história dos povos pré-colombianos. Isso seria uma das razões pelas quais o sr. passou a vida a viajar? Sempre viajei a trabalho. Nunca para conhecer um país. Há escritores que ficam em casa e esperam que o mundo venha a eles. Eu prefiro ir atrás do mundo. Nasci num vilarejo e sempre tive vontade de ver o que mais existia. Não penso que seja uma curiosidade decorrente da viagem ao México. Depois dos dicionários amorosos da Índia e do México, o sr. pretende escrever outros? Dá trabalho demais. Eu não teria tempo. Se desse, seria sobre o Irã. É um dos países que menos conhecemos, que sofre do maior contraste entre o que é e o que se pensa sobre ele. Quando estamos lá, não podemos crer no que se diz do Irã. É considerado um país de barbudos e camelos, mas jamais existiram camelos lá. Quando trabalhou com Hector Babenco, o sr. conheceu a Amazônia brasileira. Foi o sentimento mais forte que tive na vida. Eu já tinha mais de 50 anos. Estava sem alimento e o avião que deveria me buscar ficou retido. Um grupo saiu para caçar e voltou com um tatu, que foi cozinhado sem sal, sem tempero, sem nada. Como no Paleolítico. É incrível voltar à natureza assim, por acaso, sem procurar. Existem cada vez menos salas que projetam filmes de arte. O comércio triunfou? Nos anos 80, parecia que o cinema de autor tinha perdido a guerra contra o comércio. Mas surgiram filmes excelentes vindos do Irã, da Coreia, da China. Eles nos socorreram. Hoje, são milhões de pessoas fazendo filmes. Câmera no ombro, celular, tudo. Mas como levar isso ao público? A tecnologia não supera o lado comercial do cinema. Em algum momento, é preciso formar um público. O cinema de arte sempre esteve a perigo. Cinema sempre foi comércio. Os irmãos Lumière eram comerciantes. Os americanos nem aceitam a ideia de que o cinema seja arte. Que o Ministério da Cultura se envolva, nem pensar. As soluções devem vir das novas formas de difusão e de produção. O que não funciona é tentar adaptar um sistema arcaico de produção a um sistema novo de difusão das ideias. Mas o sr. considera a troca de arquivos pela internet como ameaça ao artista. O autor só é livre para criar se ganha dinheiro por seu trabalho. Senão, ele depende de um poder financeiro ou político, ao qual tem de prestar contas. Isso é o mais temível. Estamos indo em direção ao vazio. No limite, não haverá mais nada de atual a compartilhar. Só filmes antigos. A solução que aventamos era a licença global, com assinaturas, em que a sociedade dos autores distribuiria o dinheiro entre os artistas. Mas a repartição é tecnicamente impossível. A criação pode desaparecer. Há exemplos. O cinema italiano era o melhor do mundo e sumiu em dois anos, porque deixaram a televisão fazer o que quisesse. Fala-se em acesso à cultura, mas não haverá mais cultura. A França aprovou uma lei que inclui corte de acesso e espionagem de usuários... A lei é desastrada e incompleta, mas tem o mérito de chamar atenção para o problema. O sr. luta na Justiça para reaver os direitos sobre seus primeiros filmes contra uma grande produtora. É diferente. Fui vítima de má fé. Os produtores foram escroques. É pena, são excelentes filmes e ninguém consegue vê-los. Nem de graça. Nem pela internet! O sr. diz que até os anos 70 os historiadores negligenciavam o cinema. Talvez o vissem como um rival. Na verdade, é uma ajuda considerável. Sempre que vejo um filme sobre Hitler, há imagens dele que jamais tinha visto. Imagine hoje, em que Obama é metralhado pelas câmeras. Imagine: enquanto isso, Ariel Sharon está vivo! Em coma, mas vivo. E não se fala mais nele. Não é mais filmado, nem fotografado. Saiu de cena. Nos dois sentidos! Como o sr. avalia seu próprio lugar na história do cinema? Não penso em mim. Não concordo com a fórmula "conhece-te a ti próprio". Prefiro "ignora-te a ti próprio", "surpreende-te a ti próprio". Se um autor começa a falar em "meu público" ou "meus leitores", desconfie. Nada mais perigoso. Conheci muitos assim e tento evitar. INTERNET: "Estamos indo em direção ao vazio. No limite, não haverá mais nada atual a compartilhar, só filmes antigos" AMAZÔNIA: "Foi o sentimento mais forte que tive na vida. Eu tinha mais de 50 anos, sem alimento, sem transporte" CINEMA DE ARTE: "Nos anos 80 parecia que perdemos a guerra para o comércio, mas aí surgiram filmes excelentes"

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