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O arcaico e o moderno

Do pré-moderno Natsume Soseki ao pós-moderno Haruki Murakami, o mercado editorial brasileiro lança autores de todas as correntes no centenário da imigração

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O centenário da imigração japonesa no Brasil é apenas pretexto, mas o fato é que nunca as editoras publicaram tantos autores japoneses como neste ano. E melhor: todos traduzidos diretamente do japonês, sem intermediação de línguas européias, como no passado. A lista de lançamentos é extensa, mas os destaques são mesmo os escritores que sempre mantiveram diálogo com o Ocidente, de representantes mais antigos, como Natsume Soseki (1867-1916), a contemporâneos como Haruki Murakami, que acabou de completar 59 anos. Yasunari Kawabata (1899-1972), o primeiro japonês a ganhar o Nobel em 1968, ainda é a grande estrela da lista de lançamentos das editoras. Ele já tem cinco títulos publicados pela Estação Liberdade (A Casa das Belas Adormecidas, O País das Neves, Mil Tsurus, Kyoto e Contos da Palma da Mão) e um sexto está a caminho, A Dançarina de Izu. Kawabata tem ainda outro título pela Globo, Beleza e Tristeza, editora que lança este ano dois clássicos, um de Natsume Soseki, Coração, e Trem Noturno da Via Láctea, do budista e ativist a social Miyazawa Kenji (1896-1933), um dos autores mais lidos do Japão, a despeito de ter morrido cedo (aos 37 anos) e publicado apenas dois livros em vida. A mesma Globo publicou dois livros de brasileiros que não falam de literatura, mas fornecem interessantes observações a respeito da sociedade japonesa, um sobre a vida de um brasileiro em Tóquio e outro sobre imigrantes que aqui chegaram há 100 anos a bordo do Kasato Maru (Saga - A História de Quatro Gerações de Uma Família Japonesa, de Ryoki Inoue). O primeiro, Crônicas de Um Brasileiro em Tóquio, de Roland Polito, conta as experiências do professor mineiro na capital japonesa, entre 2001 e 2004. Polito fala mais do Japão de Murakami que do Japão de Kawabata. Revela como a cultura pop ocidental - particularmente a americana - influencia há várias gerações o modo de vida do japonês, formatando seu gosto. A garotada, por exemplo, desenvolveu verdadeira obsessão por roupas cor-de-rosa e não mais lê os grandes escritores orientais. Mishima está praticamente esquecido. Polito gastou os pneus de sua bicicleta pedalando pelo cemitério de Tama sem conseguir encontrar o túmulo do escritor. Sobre a vida dos imigrantes, outro livro que disputa a atenção dos leitores com o citado título de Ryoki Inoue é Sôbô: Uma Saga da Imigração Japonesa (Ateliê, 264 págs., R$ 36), de Tatsuzô Ishikawa. O autor, um repórter japonês, inscreveu-se, em 1930, num programa de imigração para o Brasil. Testemunhou a miséria de seus pares em hospedarias baratas e o regime de semi-escravidão a que foram submetidos os primeiros imigrantes em fazendas paulistas. Ishikawa (1905-1985) não se limita a descrever a viagem desses imigrantes à terra prometida. Fala das vítimas de doenças tropicais e de japoneses discriminados até conseguir impor sua milenar cultura aos brasileiros. O livro garantiu a Ishikawa o primeiro prêmio Akutagawa de Literatura Japonesa, em 1935, criado em homenagem ao escritor de Rashomon, que deu origem ao clássico filme de Kurosawa (livro a ser lançado brevemente pela Estação Liberdade). Akutagawa encabeça uma lista interminável de escritores que faltam nas estantes dos leitores brasileiros. Tanizaki é por demais conhecido, mas outros são menos lidos: Otohiko Kaga vem aí com O Vento Leste, seguido por Nagai Kafu (Crônica da Estação das Chuvas), Kakuzo Okakura (O Livro do Chá), Masuji Ibuse (Chuva Negra) e Yasushi Inoue (Fuzil de Caça). Um verdadeiro curso intensivo de literatura japonesa, em que as figuras de proa são Kawabata (leia texto nestá página) e Soseki. De Soseki, a Estação Liberdade vai lançar Eu Sou Um Gato (Wagahai- wa neko de aru, escrito entre1905 e1906). A Globo responde com outro título popular do escritor, Coração (Kokoro, 1914). O primeiro é uma sátira venenosa sobre a era Meji, criticando a cultura híbrida resultante do cruzamento de costumes japoneses com a filosofia ocidental. Ichikawa fez um filme delicioso sobre o livro há pouco mais de 30 anos, muito fiel à modernidade de Soseki, que compara a inteligência dos felinos à dos humanos, com enorme desvantagem para os últimos. Soseki é uma das grandes influências de Kawabata. Sua obra-prima é mesmo Coração, livro que complementa o primeiro ao analisar a modernização do Japão no início do século passado, elegendo um estudante como narrador dessa história. Certamente Coração foi lido por Ian McEwan para escrever Reparação - o tema do erro do passado que marca a vida de um velho recluso lembra muito a escritora arrependida do elogiado livro do inglês. Sensei, que trai um amigo e provoca sua morte, além de tudo, pode ser o narrador da história, exatamente como no livro de McEwan. O fato é que os ingleses não ignoram Soseki. Há simetria nessa relação: Soseki tampouco ignorou os ingleses. Ele estudou literatura inglesa em Londres com uma bolsa do governo japonês (entre 1902 e 1904). É improvável que tenha feito amigos ingleses, porque vivia enclausurado como seu personagem Sensei, de Coração, e fugia da burguesia londrina como quem escapa de uma doença incurável. Soseki chegou a escrever que esses foram os dois piores anos de sua vida. Voltou para Tóquio para dar aulas de literatura inglesa. Outro escritor cosmopolita que será publicado este ano no Brasil é Nagai Kafu (1879-1959), autor rebelde visto com desconfiança em sua época por tratar de temas interditos e personagens desajustados como as prostitutas do distrito vermelho de Yoshiwara. Dele a Estação Liberdade vai lançar Crônica da Estação das Chuvas. A despeito dos títulos líricos que arrumava para seus livros, ele foi profundamente marcado pelo naturalismo francês. Filosoficamente mais influente que Nagai Kau é Kakuzo Okakura, nascido em 1913 e nome respeitadíssimo no Ocidente por pilares da poesia como Ezra Pound e da filosofia. Heidegger, particularmente. Conceitos como Dasein, cunhados pelo filósofo alemão, não seriam possíveis sem a leitura de Okakura. O escritor japonês, de certo modo, também antecipou o que Edward Said diria mais tarde a respeito da idéia que o mundo ocidental faz dos antípodas, ao classificar o inclassificável de ''oriental''. Defensor de uma filosofia pan-asiática, Okakura terá seu título mais conhecido traduzido este ano, O Livro do Chá, uma chave para entender a cultural oriental por meio do ritual mais celebrado no Japão, o da cerimônia do chá. Okakura defende que ela interfere em toda a atividade cultural do Japão, da arquitetura às artes visuais. Outro escritor tremendamente marcado pela literatura estrangeira (particularmente Tolstoi) e programado também para este ano é Masuji Ibuse (1898-1963), autor do mundialmente conhecido Chuva Negra (a ser lançado pela Estação Liberdade). O livro conta a peregrinação de Shizuma Shigematsu com a mulher atrás de um possível marido para a sobrinha, tentando provar que esta não foi afetada pela radiação da bomba que destruiu Hiroshima. O cineasta Shohei Imamura fez há 20 anos um emocionante filme baseado no romance com trilha de Takemitsu. A relação dos escritores japoneses com o cinema sempre foi estreita, como comprova a adaptação de vários títulos de Yasushi Inoue (1907-1991) por diretores como Kurosawa. De Inoue serão publicados dois livros este ano, do qual o mais conhecido é Fuzil de Caça (Ryoju ), uma história de amor contada de três diferentes maneiras por meio de cartas enviadas ao protagonista. Poética, a literatura de Inoue também dialoga com o Ocidente, em especial com Paul Valéry, sobre quem escreveu uma tese.

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