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O aprendiz no horário nobre

João Emanuel Carneiro estréia hoje A Favorita, sua primeira novela das 9, e conta ao mestre Silvio de Abreu como começou a criar histórias no seu quarto de brincar

Por Patricia Villalba
Atualização:

João Emanuel Carneiro dá hoje um passo enorme em sua carreira de novelista, com a estréia de A Favorita, no horário das 9 da TV Globo. Passa agora a fazer parte de uma espécie de Olimpo, que tem uma meia dúzia de feras da teledramaturgia acostumadas a falar todas as noites com 80 milhões de pessoas, num processo que nunca é indolor. Carneiro chega ao posto com dois sucessos no horário das 7, Da Cor do Pecado (2004) e Cobras & Lagartos (2006). E antes de estrear na TV, já tinha um belo currículo como roteirista de cinema - assina Central do Brasil (1998) , Castelo Rá-Tim-Bum (1999) e Redentor (2003), por exemplo. E, ainda, numa investida como diretor levou um Kikito no Festival de Gramado com o curta-metragem Zero a Zero, em 1991. '' Nem a equipe me respeitava. Eu dizia ''corta'' e o câmera não cortava'', lembra o autor, dando a pista de que o cinema não tem feito falta. Mas, muito antes de tudo isso, quando ainda era um menino brincando sozinho, já inventava histórias para seus soldadinhos de chumbo, cidadãos de um país imaginário. ''Meu país era muito organizado. Cada um dos bonecos tinha nome e endereço '', conta ele. Foi um laboratório especial, conta ele nesta entrevista feita a convite do Estado pelo mestre noveleiro Silvio de Abreu. A escolha do entrevistador não é aleatória: Silvio acompanhou o début de Carneiro na TV, como orientador de texto de Da Cor do Pecado, novela colorida e despretensiosa, que ganhou o público. Despretensioso é uma qualidade que pode ser vista como louvável no texto de João Emanuel. Tanto é que, enquanto se cobra uma inovação na maneira de fazer novela a cada estréia, ele define A Favorita como um ''novelão'' dos velhos tempos, com poucos personagens e história concentrada num núcleo central onde - ufa! - não estão ''novas apostas'', mas as divas Patricia Pillar e Claudia Raia, vivendo rivais. '' Não tenho a pretensão de inovar a teledramaturgia. Quero contar uma boa história'', resume Carneiro. A entrevista Silvio de Abreu - Quando li a sinopse de Chocolate, que resultou em Da Cor do Pecado, seu primeiro sucesso em novelas, percebi um autor que tinha uma imaginação privilegiada e sabia muito bem contar uma história. Isso nasceu com você ou foi cultivado? João Emanuel Carneiro - Fui um filho único muito solitário na infância. Meu escape era a imaginação. Tinha um quarto de brinquedos, onde vivia uma população de soldadinhos de chumbo que pertenciam a um país imaginário. Na minha cabeça, eu era o primeiro-ministro e os soldados eram cidadãos do país. Meu país era muito organizado. Cada um dos soldadinhos tinha nome e endereço. Eles votavam todo final de ano. Em mim, é claro. Eu era sempre reeleito. Eu escrevia histórias para eles. Acho que foi aí que comecei com a coisa do ficcionista. Os personagens das minhas novelas não deixam de ser de novo meus soldadinhos de chumbo. Histórias podem ser contadas em livros, filmes, peças de teatro, por que você escolheu a televisão? Porque acho que é a grande saída para o escritor de audiovisual no Brasil. Já publiquei um livro de contos e tenho um projeto de escrever um romance. Mas a ficção da TV tem essa mágica de entrar na casa de milhões de pessoas. É um outro barato. Um jogo que você estabelece com as pessoas, muito diferente de escrever um livro em casa. Não sei quem disse que, se Victor Hugo vivesse nos dias de hoje, ia querer escrever para a TV. Concordo com isso. A meu ver novela é uma especialidade muito difícil que nada tem a ver com nenhuma outra forma de escrita ou raciocínio. Vou passar para você uma pergunta que sempre me fazem: o que é necessário para ser um autor de novelas? Bom, antes de tudo é necessário ter alguma coisa a dizer. Mas isso vale para todo escritor. O autor de novelas tem uma maneira própria de enxergar a narrativa. Uma novela é uma história de 200 horas. São 100 longas-metragens. Quem escreve precisa sentir, farejar a história que pode render, que pode se reinventar, que tem fôlego. É uma coisa instintiva. Um ofício muito específico, muito diferente do trabalho de um escritor de romances ou de um roteirista de cinema. Você até adquire a manha fazendo, mas acho que tem que ter um dom, um quê de Xerezade em você para conseguir fazer isso. Escrever é um ato solitário, você sente solidão? Muita solidão. Escrever, ainda mais novela, é um ato terrivelmente solitário. Por isso conto com meus colaboradores. Eles são meus interlocutores. Em 1991, você ganhou o Kikito no Festival de Gramado com o curta-metragem Zero a Zero. A carreira de cineasta ficou por aí? Não era roteirista, diretor, não era nada quando fiz o Zero a Zero. Nem a equipe me respeitava. Eu dizia ''corta'' e o câmera não cortava. Nunca esperava que fosse dar tão certo. Fiquei tão nervoso na estréia que passei mal. Fiz mais um curta, e depois me tornei roteirista de cinema. Nunca mais voltei pro set. Nós temos carreiras parecidas, ambos viemos do cinema e abraçamos a televisão. Você fez excelentes roteiros para filmes importantes e muitos foram premiados, trabalhou com os mais prestigiados diretores do cinema brasileiro. Alguma saudade? Nenhuma saudade. A Globo formou um grupo de criadores de universos, o que o cinema nacional não fez porque só investiu em diretores. A televisão deu tão certo no Brasil, e é tão importante aqui, que esse é o resultado. Ser roteirista de cinema no Brasil é possível como profissão? Pode até ser que alguém consiga pagar as contas do fim do mês trabalhando como roteirista de cinema. Mas você vai estar sempre contando a história que o diretor quer contar, nunca a história que você quer contar. Por isso é tão frustrante. Embora Paulo Autran costumasse dizer maldosamente que o teatro é a arte do ator, o cinema do diretor e a televisão do patrocinador, sempre achei que a TV é a arte do povo, porque é para ele que a gente escreve. Fazer sucesso, dar audiência, é imprescindível para uma novela? Também acho que a TV é arte do povo. Por isso que a elite brasileira, e, de cambulhada, a imprensa, geralmente, fazem questão de desprezá-la. Mas acho que esse tipo de preconceito está ficando meio caduco. A telenovela é uma forma de expressão como outra qualquer. E uma das grandes razões do seu sucesso é o mergulho no melodrama, que é a cara do povo latino-americano. Somos gente de sangue quente. Quanto ao sucesso, é claro que sempre queremos fazer sucesso, mas não dá para pensar na novela como uma coisa que precisa agradar de qualquer maneira. A história precisa agradar a mim primeiro. Eu sou o primeiro espectador do que faço. Pelas chamadas de A Favorita percebo que a novela tem um toque de policial, o que evidentemente me deixa muito animado porque, junto com a comédia, é o meu gênero preferido. A sua novela é um thriller? Também sempre fui louco pelo gênero policial. Uma novela sua que eu adorei foi a Próxima Vítima (de 1995). Lá o desafio era descobrir quem era o assassino. Aqui temos as duas mulheres. Uma está dizendo a verdade, outra está mentindo. A novela é uma parábola sobre a dúvida, sobre o julgamento que fazemos das pessoas. É um drama que nasce de uma premissa policial. Uma moça dividida entre duas mães. Uma delas matou seu pai. Claudia Raia e Patricia Pillar são duas excelentes atrizes de métodos e formação muito diferentes, a escalação é proposital? As duas são excelentes atrizes e eu acho divertido que elas soem tão diferentes por causa dos métodos de cada uma. A idéia é que Flora (Patricia Pillar) e Donatela (Claudia Raia) sejam o mais diferente possível uma da outra. Se elas fossem parecidas, não teria a menor graça. Quem é a vilã e quem é a heroína? Ambas podem ser vilãs ou heroínas. As duas têm qualidades e defeitos. Uma delas é uma assassina. Elas serão julgadas pelo público e por mim. Esse é o jogo. Num dado momento da história eu vou decidir, vou dar o meu veredicto. Novela é um trabalho de equipe e é imprescindível que autor e diretor trabalhem com confiança e harmonia. Como está sendo o trabalho com Ricardo Waddington? Ricardo é um diretor muito talentoso, perfeccionista e obstinado pelo trabalho. Acho que ele está fazendo uma leitura muito interessante do meu texto. Está dando verdade a essa fábula que eu criei. A cada estréia de novela sempre nos cobram alguma inovação, como se contar uma boa história nunca fosse o suficiente. Você está preparado para isso? Eu não tenho a pretensão de inovar a teledramaturgia. Quero contar uma boa história. Uma história que me interesse como espectador. Quando escrevi Rainha da Sucata para as 21 h em 1990, também vinha de muitos sucessos às 19 h como você, e tive dificuldade em assimilar o que o público da ''novela das 8'', muito mais amplo do que o das outras novelas, espera como entretenimento. Tem sentido achar diferença entre escrever para as 19 e para as 21 h? Percebo, mesmo antes da estréia, que existe uma expectativa muito maior da novela, da história, do autor. O autor das 8 h é um outro personagem da trama para o espectador. O público elogia ou critica o que o autor faz, como faria com um técnico de futebol. Na novela das 7, o autor não é um personagem tão marcante. Para terminar, quero desejar um enorme sucesso para A Favorita, dizer do quanto estou orgulhoso de você ter chegado até aqui e perguntar como o menino, filho único, que cresceu solitário e quase sem amigos, se sente prestes a ser acolhido e ter que conversar, diariamente, com 80 milhões de pessoas? O bom é que agora não estou mais sozinho no quarto de brinquedos como antes, já que as minhas fabulações repercutem na vida de um monte de gente.

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