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O alegre bestiário de um criador subversivo

Simultaneamente, chegam às livrarias cinco títulos infantis de Shel Silverstein, que desorientaram a América dos anos 1960

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Contemporâneo do ilustrador francês Sempé, o poeta, desenhista, compositor e dramaturgo norte-americano Shel Silverstein (1930-1999) não foi expulso de tantos colégios como o colega europeu, mas incomodou um bocado a ala mais conservadora da sociedade dos EUA. Alguns de seus livros infantis chegaram, inclusive, a ser banidos de bibliotecas de seu país. Silverstein era, de fato, um outsider. Sua célebre canção The Ballad of Lucy Jordan (1975) explica em parte as razões da raivosa antipatia despertada por seus temas. Nela, o poeta conta a patética vida de uma dona de casa de 37 anos, que um dia acorda para constatar a falência de seu casamento e ruminar a frustração de nunca ter passeado por Paris de carro esporte. Os cinco livros infantis que a editora Cosac Naify reedita para homenagear os dez anos da morte de Silverstein começam onde terminam os sonhos de Lucy Jordan. Neles, tudo é permitido, da subversão sintática à incorreção política, passando pela ambivalência moral. Silverstein foi um renascentista na década mais criativa do século 20, a de 1960. Os cinco lançamentos da Cosac Naify foram escritos e desenhados justamente quando a contracultura nascia. O primeiro é de 1963, O Leão Que Mandava Bala (tradução de Antonio Guimarães, 112 págs., R$ 42), fábula amoral sobre um jovem leão que adora marshmallow e tenta negociar sua vida com um caçador irredutível, disposto a usar sua pele para fazer um tapete. Confirmando a suspeita do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), de que crianças não gostam de fábulas edificantes, Silverstein subverte a lógica e recupera a tradição do nonsense vitoriano de escritores como Edward Lear (1812-1888). Nesse seu primeiro livro infantil, o leão não só desiste de dialogar com o caçador como o engole com chapéu e tudo, guardando como lembrança sua espingarda, que aprende a manejar. Treinando diariamente, vira um caçador de caçadores, vai para a cidade grande a convite de um dono de circo, fica famoso, conhece tio Shelby (o alter ego de Shel Silverstein), conquista as mais lindas garotas e acaba sozinho, após uma crise de identidade deflagrada por um grupo de caçadores e leões, que exigem dele uma definição sobre sua condição animal - afinal, Leocádio é um homem ou um felino? Como Silverstein não veio ao mundo para explicar, mas confundir, seus outros livros seguem a mesma cartilha: são fábulas construídas com o traço do desenhista que conquistou os leitores da Playboy - ele iniciou sua colaboração em 1956, desenhando cartuns, e a concluiu em 1998, escrevendo a peça Hamlet as Told on the Street. Ela trata de amor não correspondido (o fantasma do pai traz tatuado num dos braços "Gertrude para sempre"), tema também presente no livro infantil A Árvore Generosa (tradução de Fernando Sabino, 60 págs., R$ 42), que consagrou o escritor em 1964. Nele, Silverstein conta a história de uma árvore que atende generosamente todas as necessidades de um garoto egoísta. À medida que ambos crescem, ele exige cada vez mais dela. A árvore começa dando seus frutos e termina, num ritual de autossacrifício, oferecendo seu tronco para que o garoto construa um barco. No final da vida dos dois, cede o toco que lhe resta para o ancião sentar. E fica feliz por isso. Haverá quem leia A Árvore Generosa como uma parábola sobre o amor incondicional, mas, em se tratando de Silverstein, é possível que se trate, antes, de uma fábula sobre codependência e amor abusivo. A instrumentalização dos reinos animal e vegetal pelos humanos está presente também em Quem Quer Este Rinoceronte? (tradução de Alípio Correia de Franca Neto, 64 págs., R$ 42 ). Uma placa, colocada na primeira página, oferece um rinoceronte e desfia as inúmeras utilidades do animal: servir de cabide, abrir latas ou ceder seus chifres para lavrar a terra. Enfim, um bicho muito fácil de amar, mas nem tanto como a girafa "safa" de Uma Girafa e Tanto (tradução de Ivo Barroso, 48 págs., R$ 42), surrealista fábula que só perde para o felliniano Fuja do Garabuja (tradução de Alípio Correia de Franca Neto, 64 págs., R$ 45), o bestiário de Silverstein com bichos estranhos como o bibeli, que adora "encher a pança com carne de criança". Moral do Tio Shelby: chiquititos sem trauma não sobrevivem.

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