Novas fontes para analisar a escravidão

Dados quantitativos estão na base de coletânea sobre o Brasil escravocrata

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Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Engana-se aquele que pensa que tudo que a memória faz é lembrar. Nossos compêndios de história andam repletos de informações e dados, mas também de silêncios e omissões. Se vários trabalhos vêm explorando a história política do País, até pouco tempo era bem diferente a situação dos estudos que tratavam do sistema escravocrata, dominante no Brasil desde a Colônia até o Império. Tal situação pode ser entendida a partir de várias hipóteses coincidentes. Para começar, o sistema e o processo de abolição brasileiros carregam singularidades em sua representação. Em primeiro lugar, a crença de que a escravidão teria sido, no País, mais benigna e que o futuro levaria a uma nação "branca e civilizada". Em segundo, o alívio frente a uma libertação que se teria realizado sem conflitos e, sobretudo, evitou distinções legais baseadas na raça. Em vez do estabelecimento de ideologias raciais oficiais, da criação de categorias de segregação, como o apartheid na África do Sul ou a Jim Crow nos Estados Unidos, por aqui se projetou a imagem de uma "democracia racial", corolário da representação de uma "escravidão benigna". No processo de construção do Estado nacional, o Brasil personificava, assim, um caso interessante, na medida em que praticamente nenhum conflito étnico ganhara visibilidade ou qualquer medida racial oficial fora tomada após a abolição. Resta lembrar que em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa - então ministro das Finanças - ordenou que todos os registros sobre escravidão fossem queimados. Se a empreitada não teve sucesso absoluto, o certo é que se procurava apagar um certo passado e o presente significava um novo começo, a partir do zero. Evidentemente não se destruiu a totalidade dos documentos, muitos dos quais passaram despercebidos. De um lado, diante de uma população em boa parte iletrada, restaram as anotações feitas pelos próprios senhores. Não se encontram, nesse caso, fontes de primeira mão - escritas pelos próprios escravos -, mas não é de hoje que se perdeu a crença numa certa epistemologia positiva e ingênua, que supunha que os textos podiam ser neutros. E pode-se dizer que o mesmo tem sido feito com referência aos estudos pautados nos jornais, em registros policiais; na iconografia ou nos censos. O que se destaca é o investimento em novas fontes e em suas múltiplas leituras. Todo esse movimento é bastante recente, uma vez que, até os anos 1950, a historiografia nacional esteve bastante influenciada pelas obras de Gilberto Freyre e de Frank Tannenbaum, produzidas nas décadas de 30 e 40. Nos livros de Freyre uma nova interpretação cultural se introduzia, dando ênfase ao caráter paternalista da escravidão e a uma certa "acomodação de conflitos" presente em nossa sociedade. Também Frank Tannenbaum, realizando uma história comparativa, destacava diferenças entre países de tradição protestante e católica - como Portugal e Espanha -, que teriam apresentado uma melhor integração social. E tais modelos, que se transformaram em sua época em paradigmas, vêm sendo questionados. Não me refiro apenas aos trabalhos da escola de Sociologia Paulista, que buscou desmontar o "mito da democracia racial" e destacou as decorrências deformadoras da escravidão. Novos estudos têm atentado para o cotidiano escravo: rebeliões, práticas rituais, casamentos, sociabilidades. Assim, se estamos longe dos tempos em que uma certa bibliografia mais culturalista pretendeu ver na escravidão brasileira um ambiente benigno e dócil, também estamos distantes do modelo dos anos 1960, que apostou todas as suas fichas na ideia de "resistência escrava" e que viu no escravo um herói romântico. Uma clara revisão tem sido realizada, não só nos temas como nos documentos utilizados. E um excelente exemplo é o livro Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. Partindo de áreas que no começo do 19 não se definiam como grandes regiões de exportação agrícola, tais estudos põem em questão visões mais tradicionais sobre a escravidão brasileira, muito pautadas no modelo da grande lavoura escravocrata exportadora. O livro reúne uma série de artigos elaborados por historiadores da Faculdade de Economia da USP e apóia-se fortemente em dados quantitativos. Os argumentos aparecem distribuídos dentre os diferentes ensaios e são muitas vezes sumarizados por Francisco Vidal Luna, Iraci del Nero da Costa e Herbert S. Klein, organizadores do volume, que se pautam, de maneira inovadora, nos censos populacionais, nas matrículas de escravos, em documentos fiscais e em mapas demográficos. O resultado é um painel que dialoga não apenas com visões assentadas sobre São Paulo e Minas Gerais, mas que fazem sentido para todo o País. As análises centram-se em parâmetros de alguma forma diversos - como os de pequenos proprietários de escravos dedicados à agricultura de subsistência -, e mostram como predominou no Brasil um sistema muito diverso daquele anunciado por Freyre. Segundo os analistas, nas áreas em que não imperou a grande lavoura, poucos engenhos possuíam mais de 100 escravos: um plantel médio continha no máximo 65. O escravo representava, por outro lado, um ganho material, mas também simbólico, sendo a posse de cativos um bem comum, até mesmo para populações livres e de cor. Evidencia-se, pois, como possuir escravos não era benesse de poucos, mas distribuiu-se por todo o País, apesar de desigualmente. As investigações apresentam, ainda, uma sociedade muito mais complexa, e não se resume à dicotomia entre senhores e escravos. A existência de um mercado interno ativo, no qual gêneros básicos e artesanais eram comercializados, indica a convivência entre proprietários de escravos, não proprietários, trabalhadores livres e cativos. Por toda a parte havia cativos, até mesmo nos domicílios caracterizados como pobres e de negros. Foram encontrados ainda indícios da ocorrência de amplo processo de alforrias, influenciadas por motivos sentimentais, sexuais ou até humanitários, privilegiando-se mulheres e crianças. A compra da liberdade pelos próprios escravos mostrou-se significativa, assim como os números apontam para o importante papel de mulheres viúvas como proprietárias de escravos e de terras. Particularmente interessantes são os estudos sobre padrões de casamento e a constatação da alta incidência de escravos legalmente casados no Brasil. Os vários ensaios investem igualmente na verificação da existência de marcadores sociais da diferença, como cor e gênero, e demonstram de que maneira, ao contrário dos indivíduos livres do sul dos EUA, os brasileiros livres de cor não eram um grupo isolado e marginalizado. Defendem, portanto, a existência de certa mobilidade econômica para os negros, a despeito de deixarem claro como eles não chegavam a ocupar posições de maior destaque público. Não há como dar conta de todos os aspectos explorados no livro, mas é fácil notar de que forma o uso sistemático e cuidadoso de novas fontes pode trazer muito fermento para esse bolo, além de sinalizar novos caminhos e interpretações. É certo que o leitor desavisado terá dificuldade em ler tantos mapas e índices, assim como se poderá cansar com certa repetição que acompanha o argumento do livro e está presente, reiteradamente, no grosso dos artigos. Mas vale muito à pena vencer esse cipoal. Com uma historiografia social renovada, os estudos de base quantitativa têm ajudado a questionar verdades que a história vai estabelecendo por costume, continuidade ou força do tempo. Entender melhor padrões de comportamento do Brasil escravocrata, retirar a pátina do modelo romântico e patriarcal pode levar a repensar não só por que muitos negros apoiaram a ordem social, mesmo após o fim da escravidão, mas também refletir acerca da persistência da discriminação racial até os dias de hoje. Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, é autora, entre outros, de O Sol do Brasil (Companhia das Letras)

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