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Nova sátira corrosiva dos Coen

Queime Depois de Ler é uma comédia de equívocos que ironiza a CIA

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A primeira coisa a ser dita é que, depois do esforço representado por Onde os Fracos Não Têm Vez, o novo filme dos Coen, Queime Depois de Ler, parece uma espécie de divertimento da dupla. Algo como refresco, pausa para pensar e refrescar as idéias. Um filme sabático, por assim dizer. Fracos fora mesmo uma aventura cinematográfica levada no limite, adaptando para a tela o universo dark de Cormac McCarthy. Queime Depois de Ler é bem mais leve. Mas a segunda coisa a ser dita é que nem por isso ele é inferior, ou desprovido de interesse. Muito pelo contrário. É justamente em sua leveza que está a sua profundidade; e é em seu frescor de comédia de equívocos que reside uma reflexão que, decodificada pelo espectador, mostra-se bastante pertinente para o mundo de hoje. Veja trailer de Queime Depois de Ler O filme se apresenta sob a forma de uma comédia de equívocos, em que uma trapalhada leva a outra, até que o desenrolar dos acontecimentos chegue a um desfecho trágico, imprevisto para os protagonistas. Deixando entre parênteses o lado cômico, há um quê de tragédia nesse tipo de encaminhamento. As pessoas pensam controlar os acontecimentos e fazer suas opções como se as dominassem, sem se dar conta de que, pelo contrário, todo planejamento é frágil. Os personagens pensam-se como sujeitos da ação, mas não passam de objetos. Na história de Queime Depois de Ler, John Malkovich é Osborne Cox, agente da CIA demitido por alcoolismo crônico. George Clooney é Harry Pfarrer, um agente federal, e Brad Pitt, um personal trainer que trabalha em uma academia. Frances McDormand é gerente dessa academia, e Tilda Swinton, a esposa do ex-agente da CIA demitido por causa do apego ao álcool. Movido pelo ressentimento, talvez pelo tédio, Cox resolve colocar no papel suas memórias e grava o texto em CD. Sua mulher, que o está traindo, rouba o CD e o esquece na academia. A personagem de McDormand precisa de dinheiro para pagar uma série de cirurgias plásticas que acredita necessitar para sua carreira. Ela encontra o CD que parece valer muito e assim a coisa rola. Ladeira abaixo, diga-se. Mas não tente adivinhar o caminho da história, porque ela é cheia de desvios e imprevistos. No fim de agosto, o filme abriu fora de concurso o Festival de Veneza. Na entrevista que deram, os Coen desmentiram qualquer implicação política da história, mas é óbvio, para quem consegue ver, que ela comenta algo do tipo: "O que vamos fazer com o nosso passado?" Naquela ocasião, a eleição americana ainda estava indefinida e a rejeição ao governo Bush era total. Os Coen se divertiam com seu elenco, pois haviam criado uma série de personagens que não passavam de patetas. Ora, a tolice pode ser bom material para a ficção, do contrário Bush não seria ironizável e nem Flaubert teria escrito algo como Bouvard e Pécuchet. Mas a pergunta que fica ressoando, depois de visto o filme, é menos engraçada que inquietante: o que aprendemos com os erros do passado? Podemos evitar que se repitam? As histórias dos personagens se cruzam, mas não da maneira que se tornou quase banal no cinema dito de "arte" contemporânea. Existe articulação entre elas, e também sutileza no modo como os Coen costuram seus comentários sobre temas como a obsolescência da CIA, observação que se liga à crítica da obsessão moderna pelo culto físico, o sexo pela internet e outras bobagens do nosso cotidiano. Esse comentário ácido e irônico da contemporaneidade norte-americana, e sua relação com a herança da Guerra Fria, é levado com o brilho e habitual fluidez da dupla. O cinema do Coen é um grande prazer. Prazer que pensa e faz pensar. Rindo, castigam-se os costumes, como se dizia. Serviço Queime Depois de Ler (Burn After Reading, EUA/ 2008, 96 min.) - Comédia. Dir. Joel e Ethan Coen. 14 anos. Cotação: Bom

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