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No silêncio, a mais alta densidade de emoções

O Zoológico de Vidro reúne ótimo elenco, regido com maestria por Ulysses Cruz, para falar sobre o tema do amor impotente

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Por Redação
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O silêncio, tanto quanto o som, é um eficiente meio de comunicação e a arte tem recorrido a ele para compensar o ruído excessivo da civilização ou, nos experimentos mais radicais, para negar o valor das palavras nas relações dialógicas. Silenciar é, assim, um modo de repudiar a tagarelice. Mais raro, porque talvez mais difícil de compreender fora do âmbito da linguagem musical, é a manipulação do silêncio como um tempo de gestação de significados que não encontraram ainda a sua forma definitiva de expressão. É essa qualidade de potência e prefiguração de sentidos incrustada na quietude que o diretor Ulysses Cruz valoriza na encenação de O Zoológico de Vidro. Antes que se instalem no palco as personagens de Tennessee Williams, a evolução silenciosa de um ator convida a focalizar espaços ainda inabitados do palco e há neles elementos cenográficos que sugerem ou prometem significar. A lentidão, as pausas, e o tempo consumido por essa espécie de vagabundagem iniciam com o público um tipo de interlocução muda, pautada pelo ritmo caprichoso da evocação. Depois disso, a história rememorada por Tom, testemunha e narrador das vicissitudes de sua pequena família, mobiliza todos os componentes tradicionais da curva dramática: a mãe pobre e solitária lutando por um futuro melhor para seus filhos, a expectativa de salvação pelo casamento e, por fim, o fracasso determinado por uma espécie de fatalidade. Mas não é esta a curva privilegiada pelo espetáculo que, em alguns momentos, parece caminhar à contracorrente dos acontecimentos da peça para poder realçar a perspectiva "real", ou seja, o entendimento que o narrador só pode adquirir depois que se distanciou, no tempo e no espaço, da mãe aparentemente dominadora e da frágil irmã. Estruturado sobre a metáfora da vida afetiva, o desenho do espetáculo acompanha a pulsação contínua do mesmo sentimento sob as diferentes ações e imagens. Ao comandar o seu lar, a matriarca Amanda Wingfield tem o sinal duplo do admirável e do ridículo, tal como a concebeu o autor, mas esses dois componentes se fundam, na interpretação de Cássia Kiss, em uma gravidade silenciosa que transparece nos gestos e em uma espécie de elegância sem afetação. É uma decisão do espetáculo contornar os traços grotescos que estão bem nítidos na composição de Tennessee Williams (embora não sejam as únicas características da personagem). Por vezes, essa mãe nos parece risível porque é antiquada e tem a marca geracional dos velhos idealizando um passado mais bonito e perfeito. Não há, contudo, na ótica desse espetáculo, o toque de crueldade ou mesmo autoritarismo quando a mãe pretende impor-se sobre a prole. Por meio da movimentação física contida, que insinua acolhida e proteção sem saber como completar os gestos carinhosos, e, sobretudo, com uma suavidade vocal que não consegue elevar o tom nem mesmo quando fustiga a imprevidência dos filhos, a composição de Cássia Kiss é um extraordinário trabalho de concentração e sobriedade. Não há como não reconhecer que estamos diante de uma atriz excepcional e, quer queiram ou não, os grandes intérpretes desestabilizam por algum tempo a memória do conjunto do espetáculo. Em nenhum momento, entretanto, a intérprete sucumbe à tentação muito comum de confundir o exibicionismo da personagem com a dominação da cena e, pelo fato de estar sempre atenta às outras personagens e às circunstâncias das cenas, faz com que se tome muito nítida a função estratégica de máscara defensiva da "grande dama sulista". Compartilha, em resumo, a fragilidade que reconhece e teme nos filhos e essa doçura escamoteada impregna todas as cenas. O tema do amor impotente para curar os ferimentos da psique poderia pender para um ou outro lado deste binômio. Uma vez que o espetáculo optou por enfatizar a atividade amorosa que, embora incapaz de resolver problemas, é o que impele a matriarca da família, a traição do filho, a autodepreciação doentia de Laura e o pragmatismo rasteiro do visitante ocasional não predominam na atmosfera da noite do jantar. Realizada como uma cerimônia delicada em que o desejo de encantar supera a pobreza e permite entrever a mocinha sedutora e a dama refinada, as cenas da recepção e do diálogo entre Laura e Jim são, do ponto de vista formal, um ponto alto da harmonia estética e sentimental que o narrador só consegue reconhecer muito tempo depois, em uma visão retrospectiva. Sem dúvida, o ótimo elenco, conduzido com maestria para valorizar os silêncios, os semitons e os detalhes na caracterização das personagens, tem um peso decisivo na alta densidade deste espetáculo. Karen Coelho, Kiko Mascarenhas e Erom Cordeiro, encarregados respectivamente dos papeis de Laura, Tom e Jim, são impecáveis do ponto de vista técnico e ao mesmo tempo leves como devem ser as projeções da memória. Mas aqui, como na música, nada vale menos e a cenografia de Hélio Eichbauer, a iluminação de Domingos Quintiliano, a músicas de Victor Pozas e a sonorização de Laércio Salles formam uma só trama. Serviço O Zoológico de Vidro. 110 min. 14 anos. Sesc Consolação (320 lug.). Rua Dr. Vila Nova, 245, 3234-3000. 6.ª s áb., 21 h; dom., 19 h. R$ 20. Até 22/2

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