No palco, a celebração da literatura

Mostra de Curitiba traz Doido e Por Um Fio, ambas baseadas em textos literários

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Por Beth Néspoli
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Duas produções que em breve iniciam temporada na cidade de São Paulo chegaram aos palcos da mostra principal do Festival de Teatro de Curitiba. Doido, solo de Elias Andreatto, que também assina dramaturgia e direção, foi uma delas. A costura de textos de diferentes autores - Shakespeare, Artaud, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira entre eles -, falados por um ator sentado a uma mesa, corria o grande risco de resultar num recital. Andreatto opta por uma apropriação dramática dos textos, como se ditos por um personagem que realmente vivesse os conflitos expressos por cada palavra em cena. Economia de elementos cênicos - mesa, cadeira, boneca, vela - e um ator que domina a arte de expressar muito apenas com palavras estão entre as qualidades desse espetáculo. A dramaturgia ainda pede ajustes. A reflexão sobre a arte do ator, apaixonada, soa arrogante em alguns poucos momentos quando esse ofício parece ser colocado num pedestal acima "das pessoas comuns". Em Buenos Aires há um projeto apoiado pelo poder público de circulação por bibliotecas e escolas de criações teatrais camerísticas. Houvesse um projeto similar no País e Doido seria indicação adequada pela riqueza literária, sem que isso signifique menosprezar seu potencial de empatia no circuito profissional. Por Um Fio, com Rodolfo Vaz e Regina Braga no elenco, também passou pelo evento antes de sua estreia, dia 3, no Teatro Anchieta. Moacir Chaves, o diretor, é conhecido por levar ao palco, com muito sucesso, textos literários sem qualquer adaptação, palavras na íntegra, como fez com O Sermão da Quarta-Feira, do Padre Antonio Vieira, ou em Bugiaria, cujo texto era um processo, os autos, de Inquisição. Mais uma vez optou por levar ao palco cada palavra de alguns contos de Por Um Fio, livro de Drauzio Varella. Editado pela Cia. das Letras, é documento e literatura, que se lê num fôlego. Curiosamente, foi escrevendo pequenos contos para jornais que o médico Anton Chekhov se iniciou na arte da literatura. Embora sejam relatos de vivências profissionais, revelam agudo senso de percepção do comportamento humano e são claramente burilados para alcançar a força de pequenos contos. A cronologia, a trajetória de um jovem com sonhos de heroísmo até o médico maduro ciente de seus limites, dá a essa obra uma interessante curva dramática. E, ao longo do livro, Drauzio toca questões humanas, da vaidade à compaixão, que vão além da medicina. Certamente Moacir Chaves detectou tal potencial. O espetáculo começa pelos relatos mais distanciados e técnicos; aos poucos, pessoas com nome e personalidade vão surgindo no palco; até que no desfecho já não há mais separação entre o profissional e o pessoal. Aqui, em Curitiba, a apresentação acompanhada pelo Estado se ressentiu um pouco do desacerto entre sua linguagem, conversa quase íntima entre ator e espectador, e a dimensão do teatro, muito grande para a proposta. É ver em São Paulo. Apresentada no Fringe, Delicadas Embalagens, da Cia. Senhas, une em igual medida vigor juvenil com rigor na criação. O palco é uma arena que coloca o espectador próximo do ator a ponto de poder tocá-lo. Ali, três atrizes e um ator criam, em cenas ora cômicas, ora trágicas, o cotidiano de um casal que teve duas filhas na adolescência. Num espaço assim é preciso fé cênica para transportar o espectador para a ficção. O grupo consegue a leveza que o texto pede. A repórter viajou a convite da organização do festival O QUE ELES VIRAM ALMA POETA: Zeca Corrêa Leite é poeta, com obra reconhecida e admirada por curitibanos. Espectador ideal para estar na platéia de Doido. "Vim ver sem saber ao certo como seria o espetáculo, vim por Elias Andreatto. Tudo o que ele toca vira beleza. Por ele, tinha certeza de que encontraria boa arte", argumenta Zeca, justificando sua escolha. "Saí ainda mais encantado do que esperava, por causa do texto. Doido é criação de poeta." BOA SURPRESA: Jessica Melech tem 17 anos, mora em Curitiba e é estudante de Direito. Foi ver Delicadas Embalagens por indicação de amigos. "Não sabia nada do espetáculo; falaram que era bom, eu já havia visto outro no horário anterior, fiquei." E não se decepcionou. "Adorei. Não é dessas peças que você entende o que quer, ela passa para o espectador o que quer dizer. Todo mundo que saiu daqui entendeu a mesma coisa", acredita.

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