No lugar errado, na hora errada e vítima do preconceito

Obra que conta tragédia de Jean Charles não faz concessão ao sentimentalismo e mostra como vivem brasileiros no exterior

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Por Crítica Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Há pelo menos duas coisas interessantes em Jean Charles, de Henrique Goldman, e ambas falam em favor do filme. Primeiro, o diretor evita a hagiografia, aquele tipo de biografia enfeitada, tentação muito fácil um caso de flagrante injustiça e desfecho trágico como este. Segundo, Goldman opta por traçar um retrato de Jean Charles através de outro personagem, no caso sua prima, Vivian (Vanessa Giácomo), que sai do Brasil e vai viver com ele em Londres. Essa maneira às vezes indireta de contar a história oferece uma comodidade narrativa que de outra forma o diretor não teria. Mostra Jean Charles de um ponto de vista externo, não imune a críticas. De resto, deve-se dizer que o filme é, mais uma vez, de Selton Mello que, com sua energia interpretativa, simpatia e boa presença na tela, acaba muitas vezes por "roubar" as cenas de que participa. Como além disso trabalha demais, já pode sentir certa onda negativa em torno de si, como se sua presença, por marcante, estivesse já cansando. Não é isso. É apenas uma antipatia "natural" causa por alguém que ocupa muito espaço numa sociedade competitiva. Dito isso, é forçoso reconhecer que Selton serve-se do seu talento para dar vida a um personagem como se imagina tenha sido o verdadeiro Jean Charles. Um "virador" do bem, cheio de vida e inteligência, tentando se arrumar numa cidade estrangeira e hostil. Aliás, outro dos pontos fortes é a maneira bastante convincente como se retrata a comunidade brasileira no exílio. Aquele misto de ajuda mútua, vale-tudo, nacionalismo um tanto deslocado e que se expressa nos "signos pátrios": caipirinha, feijoada, futebol, música. Marieta Severo costuma contar que nunca comeu tanto feijão com arroz como no tempo em que morava em Roma, no exílio junto com Chico Buarque. Enfim, brasileiro no exterior é assim mesmo; tem bandeira em casa, veste a camisa da seleção, etc. A descrição desse ambiente, sem qualquer apelo ao "folclórico", é, de fato, um dos toques emocionantes do filme. Ele é mostrado com um tom de autenticidade que só aumenta pelo fato de contar com excelentes intérpretes, que se mostram naturais o tempo todos. De Selton já se falou um bocado. Vanessa é a boa surpresa, mas há que se lembrar também de Luís Miranda, no papel de Alex, outro desses brasileirinhos que saíram da terra natal em busca de melhores condições de vida. O Alex, composto por Miranda, expressa-se em tom realista, veemente, e nunca parece artificial, mesmo nas cenas mais difíceis, as de indignação diante do crime de que foi vítima o conterrâneo. São momentos delicados de uma história que se sabe de antemão como acaba. Mas os seus antecedentes é que parecem bem menos conhecidos, e nesse sentido o filme é muito eficaz. Sem qualquer vitimização (ou didatismo) mostra os emigrantes brasileiros não como explorados (o que eles às vezes são) mas como aventureiros, no bom sentido do termo. Pessoas que escolhem sair do ramerrão econômico de suas cidades natais e encarar o desafio de uma metrópole europeia. Muitas vezes pouquíssimo disposta a recepcioná-los a pão de ló. Mas aí está a contradição, bastante bem insinuada no filme - os imigrantes em geral encaram um tipo de trabalho que os nativos não querem mais fazer. Nem por isso conseguem se integrar melhor à sociedade. Vivem à mercê dos preconceitos. E podem ser vítimas de um mau encontro com o destino, como Jean Charles. Estava no lugar errado e na hora errada. E tinha a aparência errada, numa cidade em pânico pelos atentados terroristas. O preconceito o matou.

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