Simplicidade e complexidade, ao menos na música, podem andar juntas sem grandes paradoxos. Ainda mais pelas mãos de grandes virtuoses, que marcaram a programação do terceiro fim de semana do Festival de Inverno de Campos do Jordão. Com o tumulto político deixado de lado, pelo menos parte dele, após o secretário João Sayad confirmar a permanência do maestro Roberto Minczuk à frente do evento, sobrou enfim espaço para a música. Começou na sexta-feira. Em seu primeiro concerto, a Orquestra Acadêmica, formada por professores e alunos do festival, estreou Olhos de Capitu, peça muito sensível do compositor João Guilherme Ripper, que articula de maneira interessante o texto de Dom Casmurro com uma investigação ficcional sobre o processo de criação dessa figura mítica da literatura brasileira, transformando Machado de Assis em personagem perante o aparecimento dessa mulher misteriosa e fugidia. Em um programa pesado, que começou com Romeu e Julieta de Prokofiev e terminou com a Sinfonia nº 9 de Shostakovich, os escorregões da orquestra recém-formada são compreensíveis. Mas houve momentos de beleza - em especial o solo em que o fagote de Fábio Cury sugere toda a ironia e o desencanto que Shostakovich esconde em sua sinfonia, um divertimento para orquestra que não exclui o sarcasmo perante um regime político que celebrava a vitória na Segunda Guerra, ao mesmo tempo em que promovia perseguições dentro de seu território. No sábado, o pôr-do-sol no Palácio Boa Vista foi cenário do encontro do clarinetista Michael Collins e o pianista John Snijders. Collins é estrela de seu instrumento na Europa - e, aliada à técnica precisa, sua compreensão musical da seleção de peças de Poulenc, Debussy e Messager, mostrou por quê. O encantamento, no entanto, se deu com o trabalho de Snijders, fazendo o piano dialogar de maneira muito inteligente com o clarinete. E então, na noite de sábado, subia ao palco Nelson Freire para inaugurar o novo piano do Auditório Claudio Santoro, que ele mesmo escolheu em Hamburgo. Freire estava inspirado. Mudou o programa, trocou o Bach da primeira parte pela Sonata em Lá Maior KV 331, de Mozart, e a Sonata Op. 110, de Beethoven. Na segunda parte, Liszt, prelúdios de Debussy e a Sonata em Si Menor Op.58, de Chopin. A simplicidade aparente da escrita mozartiana; a intrincada relações de idéias musicais propostas por Beethoven; os ambientes sonoros de Debussy. Freire vai de um aspecto a outro da literatura pianística e, no final, tudo soa como ele, que consegue transformar até mesmo os mais conhecidos pilares do repertório em novidade perante nossos ouvidos.