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Necrofilia oportunista

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

O noticiário sobre a decadência dos jornais não dá refresco. Nos Estados Unidos é tão intenso que, a qualquer momento, se espera a emissão de um novo selo dos Correios representando o repórter como espécie em extinção, um mico-leão-dourado - majestoso,benéfico e irremediavelmente superado pela evolução biológica. Há uma diferença entre a cobertura das dificuldades econômicas reais dos jornais e a alegria mal disfarçada de blogueiros que "noticiam", ou, na maioria dos casos, agregam os textos publicados em jornais sobre a morte iminente da mídia impressa. Pouquíssima reportagem original emana da blogosfera brasileira. Esta coluna passará por, no mínimo, dois editores, independentemente de ser um espaço de opinião. Eles vão me impedir de atentar contra a gramática, o decoro e vão defender a qualidade editorial desta publicação. Sou bombardeada por textos online (não dá para chamá-los de artigos, tal a pobreza da edição) sobre o estado "cadavérico" dos jornais, sobre a inutilidade de lê-los, baseada na idiossincrasia de um não leitor preguiçoso. O jovem que não adquiriu o hábito de segurar a folha impressa e tem a visão de mundo filtrada por espasmos de notícias na tela, via sites, Twitter, páginas pessoais, mensagens de texto não é o alvo desta coluna. Ele é um cidadão desavisado deste admirável mundo novo - onde democracia se confunde com horizontalidade, onde acesso igualitário se confunde com qualidade. Como diria o poeta (googlem o bardo), não há a escuridão mas, sim, ignorância. Refiro-me aos autonomeados jornalistas (nada a ver com o diploma, sou contra a exigência de curso de jornalismo) que espumam de prazer quando detectam qualquer novo sintoma de debacle da mídia tradicional na qual nunca fizeram carreira. Ou, como melhor colocou o jornalista Sérgio Augusto, "cospem no prato em que não comeram". Suspeito que se recebessem um convite inesperado para integrar a redação de um respeitado jornal ou revista não só aceitariam de bate-pronto como descobririam um novo universo de virtudes convenientes para o status recém-adquirido. Ainda não recebi nenhum post sobre a reportagem do New York Times que apurou a indigência empresarial da mídia online independente dos países emergentes. A combinação de ufanismo automático com conteúdo online que não passaria pelo mais generoso escrutínio de uma redação e triunfalismo com as dificuldades de empresas que ainda usam mérito e experiência como critério editorial me lembra o personagem do desenho animado que serra o chão à sua volta. Se algum fenômeno socioeconômico biológico varresse os jornais e revistas do planeta em um dia, o silêncio dos sites, privados de fontes, seria ensurdecedor. A blogosfera alimenta-se, principalmente, do noticiário da mídia tradicional, ao agregar conteúdo alheio, num faroeste que ignora a etiqueta de créditos e atribuição, ao repercutir notícias que lhe satisfazem a autorreferência. Assim, o Twitter é saudado por uma suposta relevância semelhante ao advento da penicilina. O Twitter é mesmo uma gracinha, tem seus bons momentos como durante o atentado em Mumbai mas, atenção coveiros de plantão, de acordo com pesquisa divulgada na semana passada pela empresa Nielsen, 60% dos que se tornam membros abandonam o hábito um mês depois (inclusive a vossa colunista), um índice de retenção economicamente inviável. Quando era estagiária, eu desprezava a gerontocracia do Partidão que encontrava em assembleias e redações. Mas não torcia pela morte do jornalismo. Torcer pela morte dos jornais é a doença infantil do bloguismo. É atirar no próprio pé, não no interesse corporativo, mas no pé do cidadão. O falso choque de geração da velha e da nova mídia interessa a quem? "Ah, ser um político municipal num mundo sem jornais... Há de ser o sonho maior da história da corrupção." A declaração é de um grande repórter americano, David Simon, que abandonou a cobertura de crime no Baltimore Sun para criar duas das mais importantes séries policiais da TV americana - Homicídio e A Escuta. Simon discorda da simplificação "a internet matou os jornais". Quando ele aceitou um dos vários pacotes de demissão voluntária que foram encolhendo a redação do Sun, a internet ainda não havia corroído a base publicitária e o Sun dava 37% de lucro anual. Simon sugere um exame da contabilidade das falências de empresas do ramo, como a Tribune, de Chicago, ou a Times Mirror, de Los Angeles. O preço da ação preocupava mais do que o conteúdo, diz Simon. Nas décadas de 80 e 90, o conteúdo foi progressivamente encarado com desprezo, um adorno para anúncios. Quando a internet virou a mesa, os jornais americanos estavam fragilizados e fora de sintonia com os leitores. Mesmo o jornalismo online americano, com reforços recentes, continua a ordenhar a vaca da "velha mídia" e, o que é pior, sem modelo de negócio que represente uma alternativa a curto prazo. Então, o punhado de rebeldes sem causa devem saber quem são seus companheiros de viagem. Autoridades e políticos corruptos, empresários desonestos, todos os que já voam abaixo do radar da despopulada vigia da reportagem.

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