Náufragos

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

A gente fica velho e acaba lembrando da forma e esquecendo o conteúdo (tem a memória do corpo, mas não da alma); ou do evento, mas não do dia e da hora. A união perfeita de forma e conteúdo talvez seja tão rara quanto os elos entre a verdade e a beleza de que nos fala com tanta eloqüência e comoção Thomas Mann no seu ensaio sobre Schopenhauer. No século passado, menos pelos meus escritos sobre o carnaval como um ritual e muito pelo apreço do brasilianista Richard Moneygrand, então no auge de seu imenso prestígio intelectual, eu participei de muitas conferências internacionais. Certa vez, tomei parte numa reunião sobre "identidade nacional" realizada em North ou South Dakota (eu não lembro mais) nos Estados Unidos. Retive, entretanto, a memória do hotel onde nós - pomposamente chamados de especialistas nesse assunto que é tão ou mais fugidio que a sombra de Peter Pan - fomos hospedados. Era um daqueles gigantescos e lúgubres prédios, igualzinho ao hotel do filme do Kubrick, O Iluminado. Isolados do mundo, discutíamos as diferenças e semelhanças entre as sociedades e culturas que faziam o mundo. As fontes que, com enorme esforço ou com a facilidade de quem toma um copo d?água, os seres humanos utilizavam para se perceberem como um povo em relação a outros povos. O moderador era um simpático professor de Cornell (ou seria de Yale?) do qual eu me recordo da voz, mas não da cara. Ele e Moneygrand tentavam exorcizar a aura sepulcral do cenário, nos oferecendo um vasto conjunto de bebidas em happy hours que, no decorrer do encontro, iam ficando cada vez mais próximas umas das outras. Lembro-me do tamanho gigantesco dos copos, mas não sou capaz de rememorar o gosto das bebidas. Recordo também das discussões apaixonadas entre os que viam a identidade como conseqüência de agregados de ações individuais; e os que a viam como algo que penetrava os membros do grupo que só tinham consciência de quem eram, porque a ele pertenciam. Para o professor marginal, vindo daquela região desconhecida, chamada Bra?ziil, onde se falava espanhol e cuja capital era Buenos Aires, a reunião patenteava a batalha das idéias. Pois como sabem os verdadeiros intelectuais (esses caras que passam décadas pensando num só assunto), teorizar é uma forma de paixão. Foi, penso, nessa conferência que desmistifiquei o professor estrangeiro inteligentíssimo por escrito, mas uma besta quadrada em pessoa. Ali eu também percebi como as idéias destinadas a esclarecer engendravam escuridão; como as teorias gerais promoviam divisões; e como as noções que partiam do desacordo, criavam unanimidades. Mas se nos debates assumia-se uma pesada identidade, no final do dia, cansados de teorizar e escudados por nossos enormes copos de uísque, vodca e rum, descralizávamos nossas posições, contando anedotas precisamente sobre o que nos reunia: povos, culturas, países. Ouvi, então, as piadas étnicas mais incorretas de minha vida, tipo - "os holandeses são tão chatos, mas tão chatos, que fazem com que os suíços pareçam brasileiros" (contada por um suíço); ou "um chicano não pode casar com uma negra porque os filhos seriam muito preguiçosos para roubar" (contada por um hispano-americano). Numa dessas bebedeiras, escutei uma das mais exatas anedotas sobre a índole brasileira. Narrativa que nestes tempos de indecisão, autocrítica, desfaçatez e desespero, vale ser lembrada porque ela bota o dedo na questão central da nossa modernidade. Num bote à deriva, náufragos calculavam suas chances de sobrevivência, quando decidem fazer uma aposta bizarra. "Você quer ver como eu faço com que todos se atirem no mar?", disse um deles, lançando um olhar de desafio no companheiro. "Fechado", respondeu o amigo, "quero ver quem, nessa situação, vai trocar o barco pelo mar". O proponente foi até o grupo e disse a um inglês: "As tradições da Marinha inglesa demandam que você se atire no mar. É uma questão de honra e valor." O inglês ficou de pé, fez continência, e imediatamente atirou-se no mar. Em seguida, ele falou para um russo: "Em nome da Revolução, você deve se sacrificar pela União Soviética." O comunista hesitou, mas ao cabo de alguns minutos, pulou do bote. Restavam três pessoas. A um americano curioso, ele foi direto: "Se você sair do bote, sua família recebe um seguro de 2 milhões de dólares!" O americano murmurou um "yeah" e atirou-se na água. Triunfante, o apostador comentou: "Eu não disse que fazia com que pulassem no mar?" O amigo, estupefato, respondeu: "Sim, mas ainda faltam dois e olha, eles são brasileiros, não há como apelar." "Esses são fáceis", retrucou o apostador, dirigindo-se aos dois brasileiros que se consolavam mutuamente cantando "é doce morrer no mar". "Amigos, disse, vocês sabiam que existe uma Lei que proíbe pular na água?" Mal o apostador havia terminado a frase, os dois brasileiros já estavam, rindo, em pleno mar.

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