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Naturezas humanas

Por Daniel Piza
Atualização:

Eis uma expressão que sempre me incomodou, "natureza humana", embora, por falta de melhor, tantas vezes a tenha usado. Dos anos 90 para cá, houve o retorno de uma intensa discussão sobre o que ela significa, à vista da realidade moderna e de descobertas em tantas áreas como a neurologia e a genética. Lembro sempre a reação do grande biólogo Stephen Jay Gould ao simplismo da definição dada por Edward O. Wilson, um dos teóricos da sociobiologia (da qual mais tarde se afastou), de natureza humana como "um conjunto de predisposições genéticas". Contra essa noção estanque, outros estudiosos como Matt Ridley, em O Que Nos Faz Humanos, já mostraram que nosso estoque de genes pode ser ativado ou desativado e até transformado ao longo da interação com o ambiente, em combinações de fatores em diversos graus. Do outro lado, psicólogos como Steven Pinker atacaram o ultrarrelativismo das ciências humanas, que lidam com o ser humano como uma folha em branco a ser preenchida por condições sociais e econômicas. No Brasil, infelizmente, esse modo de pensar tem sido dominante. Nossa intelligentsia tem desprezo pela inteligência científica. Poucos se informam sobre essas novidades do conhecimento, como se o escaneamento cada vez mais refinado das atividades cerebrais não tivesse importância alguma. Lê-se mais Marx que Hume, mais Weber que Popper, mais Habermas que Ramachandran. E só pode ser por isso que até agora não se encontravam em nenhuma livraria os ensaios de um autor como Thomas Henry Huxley, de quem a editora Unesp acaba de publicar três Escritos sobre Ciência e Religião. Tal lacuna era penosa, primeiro, porque ele foi um dos grandes estilistas da língua inglesa, modelo maior do virtuosístico H.L. Mencken; segundo, porque é o pai do conceito de "agnosticismo". Há quem pense que o agnóstico é apenas um cara que diz "não sei se Deus existe", em contraste com o ateu, "Deus não existe". Mas agnóstico, para Huxley, é o sujeito que não acredita em eventos sobrenaturais, como Deus e como a vida pós-morte. É um cético, um sem-religião, um antidogmático, que não quer ser convertido nem converter. Infelizmente seus textos mais célebres, como Agnosticism & Christianity e seu histórico debate com o bispo Wilberforce sobre as ideias de Darwin não estão no belo livreto, bem traduzido por Jézio Gutierre. Mas a clareza e beleza do estilo estão ali, as ideias sobre conhecimento natural, a oposição ao dito "humanismo" dos primeiros pensadores protestantes ("bem distantes de desafiar mesmo os mais irracionais dogmas do sobrenaturalismo medieval"). E o texto final, Ciência e Cultura, antecipa o movimento atual da "terceira cultura" ao discordar da visão de Matthew Arnold de que cultura é apenas "saber o melhor que tem sido pensado e dito no mundo", como se fosse apenas literatura e não ciência, acúmulo e não experimento. Huxley tem os problemas de sua época, como a associação unilateral entre biologia e moral, presente também em Darwin, e que então terminava sempre em discurso racial. Mas não se ganha nada ignorando as qualidades tão modernas de sua mente. *** O ponto que mais tem passado despercebido no centenário de morte de Euclides da Cunha é, justamente, sua relação com a natureza. A razão para isso talvez seja o fato de que sua obra é analisada quase somente por literatos, raramente por cientistas. Euclides buscava, sim, o tal "consórcio entre ciência e arte", mas, como disse a respeito do lema "ordem e progresso", a prioridade é do primeiro conceito. Seu ídolo maior, como o de Darwin, era Humboldt, o naturalista viajante que escrevia com uma espécie de ciência lírica sobre geologia, flora e fauna. Só que a isso Euclides adicionou pensadores positivistas (como seu professor Benjamin Constant) e social-darwinistas (como Herbert Spencer); e do polonês Gumplowicz tirou a conclusão de que a luta de raças, não a de classes, é que era a "força motriz da história". Diante dos fatos, porém, precisou reformular sem negar tudo isso. A descrição de tal mistura de influências, embora exagere na atribuição de algumas (Gustave Le Bon, o da "psicologia das multidões", por exemplo), é a melhor parte da biografia que será lançada daqui a duas semanas, Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos, de Frederic Amory, pela Ateliê Editorial. A melhor biografia de Euclides até aqui era a de Sylvio Rabello, de 1966... Foi preciso que viesse um autor americano, infelizmente morto em janeiro passado, e organizasse melhor os fatos e pensamentos do brasileiro. Por outro lado, Amory se dedica pouco ao contexto histórico, às suas relações de amor e ódio com a pátria, às idas e vindas republicanas. E com isso - pois conceitos e fatos se interpenetram - não vê que Euclides nunca foi exatamente um "cientificista", pois se dizia também um homem de fé, panteísta e romântico. Euclides, principalmente a partir de Canudos, se desesperou com a solução das divergências entre seu determinismo e seu nacionalismo. Na guerra viu que sua noção de raças inferiores estava equivocada, mas não porque não houvesse raças inferiores nem muito menos porque a tal raça inferior é que era superior. O que ele viu nela foram aspectos positivos que outra raça não tinha. E que outra raça era esta? Os "mestiços litorâneos", mais degenerados, menos íntegros em termos étnicos. Euclides admirou nos sertanejos as qualidades que ele não via nessa "civilização de empréstimo" que encontrava no litoral, sobretudo o estoicismo moral e a bravura física. Para recuperar essas qualidades perdidas, Euclides se dissociou dos outros racistas da época, que não viam qualidade em quem não era branco, e defendeu a incorporação daqueles "isolados" caboclos ao progresso nacional. E qual foi o modo que encontrou para sustentar seu argumento? Uma metáfora geológica: aquela camada retardatária poderia ocupar uma posição à frente de novo, já que a terra está sempre em transformação. Aos líderes brasileiros caberia esse papel de civilizar os bárbaros, aliando sua fibra resistente à sensibilidade culta. Quando vai à Amazônia, Euclides novamente defende a ideia de que apenas os "caboclos rijos" seriam capazes de se adaptar ao ambiente volúvel e perturbador da jovem floresta pluvial. Escreve com todas as letras que eles "não são efeitos do meio; surgem a despeito do meio". Para apontar à nação qual seria seu futuro grandioso, cria um determinismo heterodoxo; nunca deixa de considerar o meio em primeiro plano, nem abandona a visão racial, mas valoriza a ação humana, a superação dos limites com o apoio dos ideais. Ou aceitamos Euclides em sua complexidade, ou não o entenderemos. *** Talvez esteja chegando a hora de ver a natureza humana com a mesma variedade da natureza exterior, com seus díspares e plurais ecossistemas, com suas formas visíveis e invisíveis, com suas competições e colaborações entre espécies. E não mais uma unidade só, criada toda no mesmo dia. POR QUE NÃO ME UFANO (1) Recebo carta do senador Arthur Virgílio porque na coluna da semana passada, sobre a falta de ética dos políticos brasileiros, escrevi que "o PSDB segue nulo, sem moral nenhuma para se opor aos descalabros, porque também sempre cevou as oligarquias e porque nomes como Eduardo Azeredo, Arthur Virgílio e Yeda Crusius esbanjam semelhanças, para dizer o mínimo". Ele diz que denunciou seis vezes José Sarney ao Conselho de Ética e que não se dobrou às ameaças. Quanto às acusações que o envolveram, afirma que foi um amigo que, sem que soubesse, recorreu a Agaciel Maia para cobrir despesa de R$ 10 mil em Paris, via Banco do Brasil, e que também já ressarciu ao Senado os R$ 328 mil que um funcionário de seu gabinete recebeu enquanto cursava mestrado no exterior. "Tenho um passado e um presente limpos", escreve o senador. Feitos os esclarecimentos, não posso deixar de lembrar que meu texto era sobre a necessidade de ver "nuances e perspectivas", tanto é que escrevi que "Gabeira não é um Sarney". E, como qualquer outro cidadão, espero que os demais acusados também devolvam as verbas usadas irregularmente, por ser essa uma obrigação mínima, não um orgulho extra. O erro maior, porém, persiste. Que um parlamentar não tenha visto problema em manter um funcionário público estudando no exterior à custa do erário é o ponto. Ou só quando um escândalo vem à tona é que a premissa do Estado como "coisa pública" tem chance de prevalecer? É melhor, sim, ver um erro reconhecido. Mas precisamos, acima de tudo, cercear a facilidade com que são cometidos. POR QUE NÃO ME UFANO (2) Vendo Mercadante revogar o irrevogável e Suplicy falando mal e falando tarde na semana que passou, não há mais como negar. O PT, como o PSDB, já não existe como partido; não tem linha nem ética nem ideológica; virou mais um clubinho fisiológico da estrutura oligárquica. Vivemos a peemedebização total do sistema político.

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