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''Não me leve a mal, hoje é carnaval''

Por Adriana Falcão
Atualização:

Todo ano é isso. Enquanto o mundo inteiro se diverte por aí, Sérgio fica em casa. Está bom, está bom. Ele sabe muito bem que "o mundo inteiro" não brinca carnaval. Apenas alguns milhões de pessoas. O que lhe dá alguns milhões de motivos para se sentir um injustiçado. Injuriado. Desventurado e deprimido. Porque é casado e sua mulher detesta multidão. E deveria constar da Declaração dos Direitos Humanos uma cláusula que assegurasse a todo e qualquer ser vivo, independentemente do seu estado civil, a possibilidade de descontar a chatice de um ano de trabalho nos quatro dias de folia. Está bom, está bom. Ele sabe muito bem que tem essa possibilidade e se prefere não desfrutá-la, isso é uma opção sua. O que não torna menor a sua tragédia pessoal. Ficar ali, como em todo carnaval, se sentindo um desgraçado de um marido escravo da sua condição de casado. Está bom, está bom. Ninguém o obrigou a se casar. Nem a manter o casamento esses anos todos. E é claro que, várias vezes nesses anos todos, ele já teve a ideia de dizer "dane-se" ao seu sentimento de culpa, desaparecer no sábado e só voltar na Quarta-Feira de Cinzas. Depois ponderou que, talvez, quatro dias de loucura, alegria e prazer não valessem um ano inteiro de paz, felicidade e harmonia. Sérgio não inveja os maridos cujas esposas gostam de carnaval, e muito menos os casais de mãos dadas pelas ruas, avenidas, bailes ou blocos. Ele não queria que sua mulher o acompanhasse na farra, animada e companheira, perguntando "quer outra cerveja, amor?", entre uma marchinha e um samba. O que ele queria era ser outro, durante o carnaval, e depois voltar a ser o mesmo Sérgio de antes, com sua mesma vida de sempre. Por isso, todo ano, ele fica ali mal-humorado, na frente da televisão, assistindo aos desfiles das escolas de samba, solidário com sua infelicidade. Bebe sozinho. Sofre sozinho. Parece resignado. Mas, lá no fundo, Sérgio acha aquilo o maior dos absurdos. Afinal, um dia desses ele era um rapaz livre e desimpedido que fazia o que bem entendesse. Dia desses. Não faz nem 30 anos. Bebia, aprontava, se esbaldava, se exauria, passava mal, vomitava, morria de ressaca. Exatamente como é para ser. Aliás, Sérgio nunca vai se esquecer daquele carnaval (foi em 84?) quando ele quebrou os dois pés. Os dois. Numa só noite. Acordou com a vassoura do gari varrendo sua cabeça. "Isso é que é vida!" Enquanto ele acalenta suas amarguras, deitado no seu lindo sofazinho, sua mulher traz uns salgadinhos que acabou de tirar do forno. "A Mangueira já passou?", ela pergunta, fingindo grande interesse. Ele responde com um monossílabo. Ela finge que não percebe e nem nunca percebeu esse ataque de autopiedade que acomete seu marido, invariavelmente, todos os anos. É um direito dele. De vez em quando ela também não morre de vontade de ir a uma festa sozinha para ter o prazer de ser cortejada? Depois passa. Tudo passa. Deixa chegar a quarta-feira.

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