Nacionalismo, uma ideologia sob suspeita

Em dossiê, Revista da USP aborda o tema polêmico num mundo globalizado

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Por Laura Greenalgh
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Encarnado por ditadores, inflamado por populistas e sempre invocado no correr de processos identitários, o nacionalismo está em pauta. Tornou-se um desafio, contrariando aquele discurso inaugural da globalização moderna, muito repetido no último quartel do século 20, segundo o qual decretou-se a caducidade dos Estados-nacionais e o fim da História. O cenário mundial, hoje, desmente aquelas previsões: justamente a globalização, ao se intensificar, acabou se convertendo em fator de revitalização dos Estados-nacionais. Esta é a conclusão a que se chega feita a leitura do volume 62 da revista Estudos Avançados, da USP, editada com rigor e sensibilidade pelo acadêmico Alfredo Bosi. Sob o nome Nação/Nacionalismo, trata-se de um dossiê de leitura oportuna, num tempo em que as relações de poder estão sendo redesenhadas pela emergência de países como China e Índia. Ou mesmo emergência do Brasil, que ao combinar estabilidade política, crescimento econômico e recursos naturais, ocupa um lugar de destaque no plano global. O dossiê, sob forma de uma coleção de ensaios, tem a virtude do duplo olhar: a primeira parte resgata intervenções acadêmicas em seminário promovido na Universidade de San Marino, Itália, em 2006. São textos olhando "para trás", buscando na História as explicações para desdobramentos vividos em diferentes nações, alguns deles levando a soluções de horror e barbárie. A segunda parte olha "para frente" a partir da trama das relações internacionais, estimulando uma indagação básica: o que seria um nacionalismo saudável, eficiente e integrador, que se ajuste às condições do século 21? O fato de os textos da primeira parte saírem de um seminário na Itália dá maior destaque à história daquele país. No caso específico, é ganho. "Não deve ser fácil representar a unidade de uma nação, especialmente em se tratando da Itália", alerta de saída Massimo Mastrogregori, professor da Universidade de Roma "La Sapienza". Mastrogregori ainda mostra como, diante do termo nação, o discurso histórico ganha limites incertos: "Somos conduzidos em uma espécie de roda-gigante vertiginosa, a tratar de questões decisivas - os destinos, a vida, a morte, o futuro da Pátria." Ainda na primeira parte, o historiador Andrea Giardina assina O Mito Fascista da Romanidade, capítulo introduzido pela imagem de Benito Mussolini nadando placidamente em alguma praia mediterrânea (vale destacar a ótima seleção de fotos da revista, especialmente as de Hitler e Mussolini no apogeu). Giardina desenterra a raiz romana do mito fascista, a disciplina e o poder como valores essenciais, a passagem da evocação republicana para a exaltação imperial, enfim, vemos como Mussolini foi ganhando feições de Augusto. No capítulo assinado pelo historiador Heinz-Gerhard Haupt - Religião e Nação na Europa no Século 19 - fica então evidente como a separação de Igreja e Estado teria criado uma espécie de vazio institucional ocupado por expressões nacionalistas. Em particular por um nacionalismo de exacerbação, como se fosse transferido ao Estado (totalitário) uma sacralidade que fora da Igreja (monolítica). Inaugura a segunda parte um artigo do diplomata e ex-ministro Rubens Ricupero, levantando um aspecto curioso: a resiliência do Estado-nacional na globalização. (Entenda-se por resiliência a capacidade de se recobrar facilmente às mudanças.) Com abundância de exemplos, Ricupero explica como o enfraquecimento do Estado-nacional, vaticinado por tantos, transfigurou-se em força e aceitação. Além da resiliência, fala de outra característica, a plasticidade, através da qual os Estados-nacionais vão se acomodando às condições do momento. "O Estado-nacional adaptou-se tanto às necessidades de mastodontes, como China e Rússia, quanto às de ilhas insignificantes do Pacífico, como Vanuatu e Tovalu", comenta o ex-ministro, lembrando que nem a Igreja Católica quis deixar de ser Estado do Vaticano. Em capítulo assinado por Samuel Pinheiro Guimarães, hoje secretário-geral do Itamaraty, tem-se a crítica ao capitalismo moderno "em campanha pelo fim do Estado". O diplomata dispara em várias direções: "A academia, os organismos internacionais, a imprensa e os governos dos países desenvolvidos permanecem convictos de que, para os países da periferia, o nacionalismo, que é o posto do cosmopolitismo global, e o populismo, que é o oposto do liberalismo radical, são dois males gêmeos a serem atacados e erradicados a qualquer preço." Já em Notas Sobre Nação e Nacionalismo, o cientista político Fábio Wanderley Reis articula as três dimensões constitutivas do Estado-nação - identidade, igualdade e autoridade - ajustando o foco no Brasil. Descarta o nacionalismo que estimula o ethos autoritário, via infusões de patriotismo. E imagina uma condição especial em que os cidadãos poderiam viver em respeito à coletividade, num civismo sóbrio, marcado pela tolerância, no seio de uma sociedade pluralista de base democrática. Isso no Brasil seria possível? Só com o fim da desigualdade, responde Reis. Hélio Jaguaribe envereda por outros caminhos ao criticar a propagação dos capitais especulativos. E Luiz Carlos Bresser-Pereira - depois de lembrar, com alguma ironia, que o nacionalismo sempre foi "uma ideologia sob suspeita" - argumenta como a competição entre os Estados-nação tornou-se hoje o fator econômico e político mais decisivo do capitalismo global. Pois tomando a afirmação de Bresser-Pereira, pensemos num mundo onde a geopolítica passa a ser definida por disputas em setores como biotecnologia, meio ambiente, energia, segurança alimentar. Parece provável que o "sentimento da pátria" aflore em várias partes do mundo, especialmente num quadro de escassez de recursos. Consideremos, então, duas premissas. Primeira: o nacionalismo funda-se na idéia primordial de Nação. Segunda: para existir, ele precisa contar com a adesão dos cidadãos. Então, pergunta-se: a que projeto de Nação queremos aderir? Talvez nós, brasileiros, devêssemos nos ocupar da indagação. Ela é o futuro - hoje.

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