Na sua poesia, uma parte a iluminar o todo

Escritor se considerava essencialmente um poeta e sua vida carregou todos os clichês românticos típicos das vidas dos bardos

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Por Joca Reiners Terron
Atualização:

Em uma de suas crônicas publicadas no jornal chileno Las Últimas Noticias, Roberto Bolaño afirmou que se tivesse de "assaltar o banco mais vigiado da Europa" e pudesse escolher livremente seus companheiros de malfeitorias, "sem dúvida escolheria um grupo de cinco poetas". "Cinco poetas verdadeiros, apolíneos ou dionisíacos, dá no mesmo, porém verdadeiros, com um destino de poetas e com uma vida de poetas. Não há ninguém no mundo mais valente do que eles." O chileno auto-exilado em Blanes, balneário da Costa Brava catalã, sempre se considerou essencialmente um poeta e sua vida aventurosa e trágica carregou todos os clichês românticos típicos das vidas dos bardos. Desde o anedotário bem conhecido de sua passagem pelo Chile durante o golpe de 74, até as estripulias líricas mexicanas narradas em Os Detetives Selvagens e em outros livros de relatos, Bolaño viveu dessas existências que não têm outra saída a não ser transformarem-se em literatura ou em lenda. Melhor, no seu caso, que tenha se transformado em ambas. Um leitor infernal de poesia, ele também escreveu poemas. E muitíssimos, dos infra-realistas anos de 1970 no México a 1993, quando organizou para publicação La Universidad Desconocida, coletânea definitiva de seu trabalho poético e publicada postumamente em 2007. O ano-limite de 1993 foi uma data-chave para o chileno: teve com Carolina seu primogênito, Lautaro, e foi diagnosticada a doença hepática que o mataria em 2003. Como o grande Nicanor Parra protestaria depois na Feria del Libro de Santiago do mesmo ano: "Devemos um fígado para Bolaño." Pressionado pela urgência e pela saúde, Roberto encerrou seu tórrido caso de amor com a poesia e começou a escrever ficção, tencionando concorrer aos diversos prêmios em dinheiro promovidos por boa parte dos municípios espanhóis. E assim começou sua carreira de "caçador de recompensas", um Wyatt Earp buscando sobreviver por meio de concursos de literatura. Apenas outra conformação da cosmogonia já presente nos seus poemas, a ficção de Bolaño propiciou as medidas elásticas e dinâmicas que se lhe faziam necessárias para o processo alquímico de transformação da sua vida breve em arte. Dona de maestria coloquial muito próxima da música da fala, a dicção de sua poesia se insinuou nessas narrativas quase sempre construídas sobre monólogos (às vezes delirantes, como em Amuleto e Noturno do Chile, quase sempre polifônicos e multitudinários, como em Os Detetives Selvagens e 2666). Apreendida sem dúvida na matriz igualmente chilena de Nicanor Parra, o autor de Poemas y Antipoemas (1954) a quem nunca negou filiação além de, pelo contrário, sempre perfilar-se ao lado das diversas gerações de outros devedores do DNA antipoemático de Parra como Enrique Lihn ou Gonzalo Rojas ou Diego Maquieira, a poesia de Bolaño preza pelos mesmos valores cinéticos e fluidos de sua prosa. Este fragmento de Noturno do Chile só corrobora esse idêntico poder imagético entre ambas: "(?) enquanto padre Fabrice e eu conversávamos, de repente Ta Gueule tornava a aparecer como um raio ou como a abstração mental de um raio para cair sobre os enormes bandos de estorninhos que apareciam pelo oeste como enxames de moscas, enegrecendo o céu com sua revoada errática, e após alguns minutos a revoada dos estorninhos se ensangüentava, se fragmentava e se ensangüentava, e então o entardecer dos arredores de Avignon se tingia de um vermelho intenso, como o vermelho dos crepúsculos que você vê da janela de um avião, ou o vermelho dos amanheceres, quando você acorda suavemente com o ruído dos motores assobiando nos ouvidos, corre a cortininha do avião e distingue no horizonte uma linha vermelha como uma veia, a femoral do planeta, a aorta do planeta, que pouco a pouco vai inchando, essa veia de sangue, foi a que vi nos céus de Avignon, o vôo ensangüentado dos estorninhos, os movimentos como de paleta de pintor expressionista de Ta Gueule (?), depois padre Fabrice assobiava, e esperávamos um tempo indefinível, medido unicamente pelas batidas do nosso coração, até nosso trêmulo falcão pousar no seu braço" (tradução de Eduardo Brandão). A reunião da poesia produzida de 1981 até o fim por Bolaño em La Universidad Desconocida (excluiu sua fase adolescente e mexicana desse último livro por ele organizado), já afirmaram seus amigos Rodrigo Fresán e Alan Pauls, vem ocupar o vácuo deixado por Os Detetives Selvagens, cartapácio com alta densidade demográfica de poetas que comem e bebem poesia o tempo todo, mas que não escrevem poesia, que não deixam seu rastro poético pelo mundo. La Universidad Desconocida permanece assim uma antologia máxima desses anos infra-realistas narrados, suma poética a ser lida a contrapelo de sua ficção, uma parte a iluminar o todo. Vigia noturno dos sonhos alheios, camelô da realidade e co-piloto do Impala, Roberto Bolaño formaria uma quadrilha só de poetas para promover o crime: "Se tivesse que assaltar o banco mais protegido da América, em meu bando só haveria poetas. O roubo terminaria, provavelmente, de forma desastrosa, porém seria hermoso." E poderia ser outro, o esporte radical desse filho de Orfeu? Não houve poeta mais valente do que Roberto Bolaño.

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