Na Europa, consagração e rejeição a um só tempo

Prêmio Goncourt de 2006 ainda causa polêmica no meio literário

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Por Andrei Netto
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A rentrée littéraire, o período de lançamentos literários simultâneo ao retorno de férias na Europa, em setembro, é um evento intelectual na França. Editores jogam ao mercado dezenas de obras inéditas, nos quais apostam mais ou menos cifras, traduzidas em campanhas de marketing maciças. Os bem-sucedidos desse embate intelectual transformam-se em heróis da literatura, efêmeros ou não, ao grafar seus nomes nos palmares da Academia Francesa de Letras ou do Prêmio Goncourt. Nessa trajetória já se inscreveram Antoine de Saint-Exupéry, Simone de Beauvoir, André Malraux, Marcel Proust, Georges Duhamel e, desde 2006, um americano - o primeiro -, Jonathan Littell. Filho do jornalista e escritor Robert Littell, Jonathan, então com 38 anos, surpreendeu o mundo das letras ao descrever, em sua primeira obra e em francês, a autobiografia fictícia de Maximilien Aue, um oficial da SS alemã. Desde seu lançamento, há um ano, a opinião pública européia ou rasga-se em elogios ou reserva críticas cáusticas à obra, As Benevolentes. Publicado na França com primeira tiragem de 12 mil exemplares - quatro vezes maior do que o usual para um escritor desconhecido -, bateu os 700 mil em seu primeiro ano. Tamanho sucesso de público, entretanto, não se deve a uma leitura fácil, banal ou pobre, e sim à acolhida contraditória da crítica européia, que o ama ou o detesta, mas de forma alguma o ignora. O "fenômeno Littell" teve início com uma primeira onda de avaliações favoráveis em todo o continente. Em agosto do ano passado, Jérôme Garcin, editor de Literatura da revista Nouvel Observateur destacou em título: "Littell é grande". Uma capa da mesma publicação, distribuída em grandes cartazes pela capital, dizia: "Atenção, obra-prima". Os alertas da imprensa se sucederam até que a fundação Goncourt, que outorga todos os anos o prêmio de melhor livro na França, rendeu-se "à jovialidade, à originalidade do talento, às tentativas novas e ousadas do pensamento e da forma" de Littell. Em três meses, o livro vendeu 250 mil cópias. Às críticas positivas se somou, então, a euforia. Em seqüência, artigos passaram a comparar o fôlego, o sedimento histórico e o estilo da narrativa de Littell a mestres da literatura russa como Tolstoi, Dostoievski e Vassil Grossman. A crítica simpática detonou uma seqüência de comparações entre As Benevolentes e clássicos como Guerra e Paz e Crônicas de Sebastopol, de Tolstoi, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Estudiosos da literatura e jornalistas se divertiram caçando citações, cotejando personagens, pesquisando semelhanças. O que os críticos eufóricos parecem ter esquecido em relação a Littell e seu livro é que, tanto no que diz respeito a Tolstoi como a Dostoievski, falta-lhe um elemento essencial: a inovação. O primeiro é tido por parte dos historiadores e críticos da literatura - a simples controvérsia em torno dessa hipótese já prova a genialidade do autor - como o homem que refundou a idéia do romance e da ficção. Sobre o segundo pesa a referência de "gênese" do pensamento existencialista e de conceitos de Nietzsche. Logo, resumir a comparação entre Littell e os russos à narrativa envolvente e à técnica de unir a História, ou uma leitura pessoal dela, à ficção soa superficial. Ou como publicidade. Esses argumentos estiveram entre os mais freqüentes da segunda leva de críticas, então negativas, enfrentadas por As Benevolentes.Segundo historiadores como Peter Schöttler, um dos maiores especialistas do mundo em nazismo, se para alguns o narrador-carrasco é o surpreendente e fascinante da obra, ele é para outros seu ponto fraco. Schöttler aponta que dentre os oficiais nazistas, nenhum se atrevera a buscar refúgio na França no pós-guerra, mas sim na América Latina ou na própria Alemanha Ocidental. O historiador acusa Littell de falhar em sua documentação, a ponto de espalhar erros em profusão na grafia dos termos técnicos que usa. Schöttler destaca ainda que o personagem central, militar de alta patente, não usa a linguagem da caserna, não faz jogos de palavras típicos dos militares, não usa o humor alemão e se recorda, ao refletir, de filósofos e autores franceses, parte deles estranhos mesmo aos eruditos alemães. Em outras palavras, as referências intelectuais do oficial alemão são todas francesas. "É precisamente essa abordagem franco-alemã do livro que me parece confusa, por ser extremamente artificial, pouco credível e, logo, falsa", argumenta. Por outro lado, os detratores de Littell esquecem da temática pertinente de seu livro, a idéia de implicação de cada um nas máquinas de guerra. Em As Benevolentes, fica clara a responsabilidade individual, sem a qual a logística terrificante de um regime como o nazista não funcionaria. Não são as mortes em massa que mais chocam no Holocausto, mas sim as histórias cruas, como a da grávida assassinada a sangue frio, ou de seu bebê que, uma vez salvo, é jogado à parede e morto para não causar problemas futuros à eficácia do regime. Em síntese, As Benevolentes admite que tamanhos barbarismos não são perpetrados por monstros, e sim por homens; logo, não são "monstruosidades", mas "humanidades". Entre os méritos de Littell está o poder de colocar este tema, a origem humana da barbárie, há um ano no centro dos debates. Ao menos do mundo literário.

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