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Na cama com Federico Fellini: o grande sonhador

Il Libro dei Sogni traz mais de 400 desenhos e anotações que o mestre italiano fez de seu sono ao longo de 30 anos

Por Flavia Guerra
Atualização:

"Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão todos os poemas que esperam ser escritos", disse Drummond. "Penetra surdamente no reino das palavras e desenhos de Federico Fellini. Lá estão todos os filmes que esperam ser rodados", poderia dizer o poeta diante de Federico Fellini: Il Libro dei Sogni. Esse livro dos sonhos de todo fã de um dos grandes mestres do cinema traz mais de 400 desenhos e anotações até hoje inéditos que o diretor italiano realizou durante 30 anos. Lançado há um mês na Itália e tema também de Fellini Oniricon, exposição vista por milhares de pessoas durante o segundo Roma Film Fest, esse catatau prova em cores e sonhos por que Fellini foi capaz de levar seus delírios oníricos para as telas e deixar sua marca na história do cinema. Ao abrir e folhear as centenas de páginas que recheiam os oito quilos que dão forma aos sonhos que o diretor italiano teve do fim dos anos 60 até o início dos 90, a sensação é de observar pelo buraco da fechadura a intimidade não só de uma figura que foi capaz de dar vida ao imaginário de um povo, mas também a de descobrir que figuras como o célebre Paparazzo, Silvia, Rubini, Cabíria não são só criações de Fellini. Ainda que em suas visões, todos esses personagens foram, de fato, reais. Seria ele o sábio sonhando ser borboleta? Ou a borboleta sonhando ser um sábio diretor de cinema? Fellini bateu suas asas coloridas por meandros de um subconsciente muito ciente de seu tempo, sua cultura, seus medos, seus desejos e delírios. Mas, afinal, o que é O Livro dos Sonhos? "Mais fácil dizer o que não é. Não é só um diário nem um romance, apesar de haver verdadeiras crônicas. Não é quadrinhos. Não é o storyboard de um filme. Nem uma síntese pictórica", explica Tullio Kezich, grande amigo e biógrafo do diretor. É tudo isso junto. "Federico encontrou uma forma de relatar seus sonhos que o leva de volta às suas origens, quando ainda era desenhista. É possível fazer várias leituras. Histórica, política, psicológica, de costumes. Mas o mais importante é que, por meio de suas páginas, é possível entender melhor o mundo interior de um artista." Não só esse mundo é único, como tal diário não tem precedentes. "Ele inaugurou sem querer uma nova forma de autobiografia." E a história da publicação não seria mais onírica se tivesse sido inventada. "Este livro é a tradução literal de todas as anotações que Federico fez." Tudo começou quando o psicanalista junguiano Ernest Bernhard sugeriu a ele que anotasse e ilustrasse seus sonhos e pesadelos. E assim o fez diariamente de 1960 até os anos 90. O Livro dos Sonhos nada mais é que a transposição fiel desses apontamentos fellinianos. Vale lembrar que Fellini saiu de sua Rimini natal aos 19 anos para cursar Direito em Roma. Queria mesmo era ser jornalista, mas começou sua carreira como desenhista. O jovem Fellini já havia sido, aos 18 anos, antes mesmo de terminar o segundo grau, caricaturista do suplemento semanal La Domenica del Corriere (que vinha encartado todos os domingos no tradicionalíssimo diário Corriere della Sera). Já em Roma, seu primeiro emprego foi como cartunista e ilustrador do jornal de sátira política Marc?Aurelio, que tinha tiragem quinzenal. "Ele foi contratado para desenhar, mas contava tantas histórias boas que os editores pediram que começasse a escrevê-las. E acabou se esquecendo que também sabia desenhar", conta Kezich. Não por acaso, é o mesmo grupo editorial que controlava o Marc?Aurelio, o Rizzoli, que edita O Livro dos Sonhos. Duas edições foram lançadas. Uma em formato original, de 49 cm X 35 cm, pesando oito quilos a preço de 300; e outra ?reduzida?, de 35 cm X 26 cm, com cinco quilos e a 99. "Houve um verdadeiro concurso para a escolha da editora que ficaria responsável pelo livro. E a Rizzoli foi a que ofereceu as melhores condições. Rapidez, qualidade e muito apreço pelo material", diz Kezich. "E é justíssimo que seja a Rizzoli a editar o livro. Foi no Marc?Aurelio que o trabalho do Fellini saltou aos olhos. Suas histórias eram tão divertidas e interessantes que ele ganhou cada vez mais espaço. Nunca se sabia se elas tinham realmente acontecido ou não passava de puro delírio e invenção", completa o biógrafo. Mas, aos olhos de quem ganhou de presente clássicos como La Dolce Vita e Amarcord, que diferença faz o limite entre ficção e realidade? O Livro dos Sonhos revela que, para o cineasta, ?o trabalho silencioso? (como ele chamava o sonho) era tão importante quanto as horas em que ele passava acordado. Nas páginas do diário, retratou as mulheres que passaram por sua vida, a mulher de sua vida: Giulietta Masina; seus amigos, seus inimigos, seu alter ego Marcello Mastroianni, seus medos, suas viagens, seu tempo. Há apenas uma ?janela? nessas décadas retratadas. "Os anos de 1968 a 1974 não constam dos relatos. Não se sabe até hoje se ele renunciou ao diário nesse período ou se os originais foram perdidos. Há quem diga que ele os perdeu em uma mudança. Há quem diga que os emprestou a psicanalistas americanos, que queriam fazer uma pesquisa sobre o diário." Nos anos que constam, descobre-se que Fellini sonhou com muitos de seus filmes. Para delinear melhor esse passeio pelo mundo felliniano, a exposição Fellini Oniricon foi dividida em várias partes. Há, por exemplo, a seção A Mulher de Fellini. Sempre retratada em curvas imensas. Impetuosas e seguras, chegavam a ameaçar. "Ele dizia muito sobre a cultura italiana. A rigidez católica, o sexo como pecado e desejo, a mulher como objeto desse desejo e de perigo. O imaginário do italiano está todo ali." Resgatar esse material foi trabalho de arqueologia. Os quilos de sonhos acumulados ao longo das décadas estavam mofando em um banco na Itália até que a Fondazione Fellini decidiu brigar por seus direitos. "Quando ele morreu, em 1993, não havia feito um testamento. Sua herança ficou para a Giulietta. E ela, muito nobremente, não quis abrir os diários. Disse: ?Isso é coisa do Federico. Diz respeito à vida dele. Não tenho o direito nem quero escarafunchar algo tão íntimo?", conta Kezich. Giulietta, então, mandou tudo para uma caixa-forte. "Só que ela morreu logo em seguida, em 1994. Começou, então, uma disputa pela herança do Federico entre a família da Giulietta e a dele. E o calhamaço acabou esquecido num cofre", continua Kezich. "Dez anos depois, diante da ameaça de se perder esse tesouro, a Fondazione conseguiu comprar o material e decidimos publicar tudo", conta Kezich, que confessa que, com ?a descoberta? dos diários, seu trabalho de biógrafo foi imensamente favorecido. "Não usei os relatos dele para melhorar meu livro, mas as obras são complementares", conta ele, que lançou uma versão ampliada e revista de seu livro Fellini - Uma Biografia. "Esta versão, que sairá no Brasil, é mais completa. Por respeito à Giulietta, deixei de falar de várias passagens. Agora, muitos detalhes foram esclarecidos." O Livro dos Sonhos deve ser publicado no Brasil em 2008, assim como a exposição deve aportar por aqui depois de passar por vários países.

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