Na cadeira do dentista

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Por Milton Hatoum
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Admiro os dentistas, profissionais que usam em seu trabalho instrumentos pontiagudos e afiados; no entanto, o fazem com extrema paciência. Alguns esbanjam delicadeza e tato. Claro que a anestesia ajuda muito; mesmo assim, a mão do dentista, seus gestos meticulosos e certeiros, a inclinação da broca ou da pinça, a própria agulhada da anestesia, tudo isso depende de uma habilidade ímpar. Desconfio a razão de os dentistas falarem muito. São seres solitários diante do sofrimento do paciente, por isso exercitam um monólogo demorado a fim de exorcizar a solidão. Um paciente de boca aberta, mas incapaz de pronunciar uma palavra, é apenas uma companhia decorativa. Não pode falar nem sorrir. Rir, nem pensar. Talvez concorde ou discorde com um som gutural, patético, que vez ou outra se confunde com um esgar de sofrimento. Há mais de dez anos um dentista começou a contar por que era infeliz com a esposa, e quando tive vontade de dizer algo - ou pude de fato falar - ele já contava as delícias do terceiro casamento. Já nem sei quantas histórias de vida ouvi enquanto o dentista fazia o tratamento de um canal. E basta uma limpeza de dentes para que o paciente escute - entre tártaros retirados com uma pinça inclemente - um episódio picante, um lance venturoso ou desconcertante da vida do profissional ou da vida alheia. Gosto de dentistas indiscretos, ou de dentistas que inventam histórias durante a consulta. É um momento raro em que o paciente sentado ou quase deitado, assume ares de psicanalista. Enquanto a broca zune barbaramente, a voz do dentista narra cenas extraordinárias ou viagens insólitas; no fim, com a gengiva inchada e a boca insensível pela anestesia capaz de derrubar um cavalo, sinto-me revigorado por ter escutado tantas histórias. Na minha relação com os dentistas ou com a odontologia, lembro-me de dois episódios marcantes. O primeiro, traumático, me remete ao dentista da minha adolescência. Era um homem pouco sutil, cujo olhar penetrante e a cabeça careca e reluzente lembravam o ator russo Yul Brynner. A decoração do consultório parecia o cenário de um romance gótico. Tudo era tétrico e sombrio, e quando Yul Brynner acendia o foco, eu sabia que ia sofrer. Talvez ele tenha sido o penúltimo boticário da minha cidade. Mas isso era o de menos. Enquanto arrancava um dente, cantava uma ária com uma voz tão cortante e desafinada que meus ouvidos doíam mais que a boca. Esse solista romântico e fora do tom quase me enlouqueceu. Quando saí do consultório, procurei um dentista mudo, mas nenhum dentista do mundo é totalmente mudo. Minha segunda lembrança não aconteceu na cadeira do paciente, e sim na sala de aula. Eu lecionava literatura francesa e, pouco antes do começo do semestre letivo, o chefe do departamento me escalou para dar aula de francês instrumental para finalistas do curso de odontologia. Em poucos dias, tive que ler artigos em francês sobre gengivite, periodontite, formação de bolsas peridentárias, cirurgia maxilofacial, implantes; tive que aprender o nome de dezenas de tipos de brocas e pinças, e essa terminologia técnica me causou pesadelos, como se eu fosse um paciente de pé na sala cheia de estudantes ávidos de aprender palavras e frases de odontologia na língua de Maupassant. No fim do curso, fui convidado a assistir a algumas aulas práticas, em que os finalistas exibiam sua habilidade de quase dentistas na boca dos pobres e humildes da minha cidade. Um aluno que atendia a uma mulher idosa quis explicar a causa de um sangramento na gengiva da paciente. Fechei os olhos e murmurei alguma coisa, concordando com a explicação. Depois ele disse: esta pobre senhora nunca tratou dos dentes, por isso ela perdeu quase todos. E então soube que de cada dez pacientes, três eram desdentados. Também essa palavra - desdentados - os alunos conheciam em francês. Talvez seja o caso de perguntar para que serve esse conhecimento, se os milhões de brasileiros pobres não podem escovar os dentes nem tratá-los.

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