NOVA YORK - Das lembranças de menino em Smilovitchi, a vila russa onde nasceu, nunca saiu da cabeça de Chaïm Soutine (1893-1943) ter visto um açougueiro, seguindo a tradição judaica, cortar e sangrar a garganta de um ganso. “Eu quis gritar, mas a aparência e a alegria dele prenderam o grito na minha garganta”, contou anos depois, quando já era um dos grandes pintores que surgiram em Paris nas primeiras décadas do século 20. “Sempre sinto o grito ali... Era esse grito que eu tentava libertar.”
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A emoção que Soutine silenciou na infância ressoou em carcaças bovinas, aves degoladas e peixes de olhos esbugalhados que ele pintou, obsessivamente, por cerca de três décadas. Uma seleção de 32 daquelas obras reunidas em Flesh, mostra que o Jewish Museum de Nova York exibe até 4 de setembro, revive a sensação trágica do momento entre a vida e a morte que marcou tão profundamente um dos retratistas de maior impacto da arte moderna.
Num paralelo entre beleza e dor, entre animal e homem, Flesh acompanha a escolha que ele fez para afinar seu talento na pintura de naturezas-mortas quando emigrou para Paris, em 1913, enquanto outros jovens artistas da época seguiam as tendências do cubismo, do dadaísmo ou do futurismo. Guiado por seus instintos artísticos e observando a obra de mestres como Rembrandt, Cézanne e Courbet, Soutine criou a própria linguagem na arte de representar seres inanimados.
Criou também uma coleção de histórias sobre seu processo criativo a partir da observação direta do modelo. As pessoas se espantavam ao vê-lo arrastando grandes pedaços de carne de algum matadouro para pendurá-los nas vigas do seu estúdio em Montparnasse. Eram constantes as reclamações de vizinhos por causa do mau cheiro dos bichos mortos e suspeitou-se de um assassinato quando o sangue de um deles escorreu por debaixo da porta para o corredor.
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“As naturezas-mortas de Soutine adotam a noção modernista de que gesto, material e cor são tópicos da arte tanto quanto os objetos”, diz Stephen Brown, curador do Jewish Museum que organizou a exposição. Soutine reinterpretou os exemplos de naturezas-mortas que estudou no Louvre em imagens contorcidas e turbulentas, substituindo linhas descritivas pela aplicação de cores fortes e cruas em movimentos rítmicos sobre a tela.
Natureza-Morta com Arraia, pintado por volta de 1924 e visto na entrada da exposição, é inspirado em A Raia, óleo sobre tela que Chardin pintou em 1728. Nas quatro versões que criou a partir da pintura de Chardin, Soutine arranjou objetos parecidos em seu estúdio, reduziu o número deles na cena e cortou o fundo para enfatizar as características do peixe destripado e de boca aberta.
As várias telas com aves como tema são entendidas como referências ao “kaparot”, ritual judaico no qual os pecados são transferidos para uma galinha antes de o animal ser sacrificado para o Dia do Perdão (Yom Kippur). Em algumas das pinturas de Soutine, a posição do corpo e as linhas trêmulas de tinta sobre a tela sugerem que o animal ainda esteja se debatendo.
Em 1922, o médico americano Albert Barnes, que era um grande colecionador de pintura moderna, visitou o marchand Paul Guillaume em Paris e este lhe mostrou cerca de 50 pinturas de Soutine. Barnes comprou todas, pagando por elas cerca de 60 mil francos; com isso, permitiu a tranquilidade econômica do pintor e incentivou o sucesso dele entre outros colecionadores.
Mas sair da miséria financeira não mudou a prática repulsiva de Soutine preparar as cenas de suas naturezas-mortas. Para pintar uma carcaça de boi, ele remontou no estúdio a cena de O Boi Abatido (ou O Boi Esfolado), pintado por Rembrandt em 1655, que viu no Louvre. Na sua versão, Soutine reduziu o cenário realista de Rembrandt apenas ao corpo aberto do animal, em tons de amarelo e vermelho, sobre uma superfície abstrata de tons azuis. Entre 1925 e 1926, ele teria pintado carcaças pelo menos dez vezes. Derramava sangue sobre a carne apodrecida para preservar a imagem de um animal recém-abatido e dar aparência fresca à carne. Ao ter seu material de trabalho confiscado pela polícia, ele fazia preleções sobre a arte ter importância maior que a higienização.
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As telas do seu último período de vida, criadas entre as vésperas da Segunda Guerra Mundial e durante o conflito, quando ele se refugiou numa zona rural a oeste de Paris, demonstram intenção mais naturalista do que as anteriores. Pequenas pinturas de animais ainda vivos, como a de um burrico, feita por volta de 1934, e a de um carneirinho do outro lado de uma cerca, do começo da década de 1940, apesar de melancólicas, são mais calmas que as carcaças de bois e aves depenadas.
Segundo uma inscrição feita por Marie-Berthe Aurenche, companheira de Soutine nos últimos anos de vida dele, A Lagoa de Patos em Champigny, de 1943, foi pintado em julho daquele ano, um mês antes da morte do artista. “Enquanto o estilo evoca a tradição da pintura de paisagens ao ar livre, a dinâmica das pinceladas e a sensualidade da superfície antecipam a abstração”, aponta Stephen Brown. Soutine deixou em suas telas inspiração para uma nova geração de vanguarda que buscava a expressividade gestual sem restrições. Francis Bacon, Jackson Pollock e Phillip Guston, entre outros, olharam para ele assim como ele olhou para Rembrandt.