Mundo de um imenso escritor

Antologia Pessoal, de Borges, traz textos pelos quais ele gostaria de ser julgado

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Por Leda Tenório da Motta
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Num de seus inúmeros golpes de autoironia, Borges declarou ao mundo, no auge de sua fama planetária, que só estava sendo confundido com um grande escritor porque teve a sorte de não nascer no século 19, quando a concorrência teria sido infinitamente maior. É com esse mesmo espírito que ele condescende em resumir-se em sua Antologia Pessoal, reunião de textos em prosa e verso por ele mesmo indicados, no prólogo do livro, como sendo aqueles pelos quais gostaria de ser "julgado", palavra que vibra aí, menos como um sinônimo de "apreciado", ou "interpretado", ou o que quer que tenha a ver com uma crítica profana, e mais como uma ameaça de sentença do tribunal da eternidade, a que ele prefere se referir. Quem leu a melhor entrevista jamais feita com Borges - aquela conduzida pelo radialista argentino Antonio Carrizo, que foi ao ar diariamente, em emissões de três horas e meia, pela Rádio Rivadavia de Buenos Aires, durante os meses de julho e agosto de 1979, e que está hoje recolhida num volume imperdível - sabe o quanto o escritor, que se passa em revista, nessa oportunidade, ao completar 80 anos, sabe espiar-se por cima dos próprios ombros, o quanto ele se vê falhar, se flagra muito aquém do dom da expressão, ou o que é pior, muito além. Pôr-se na linha da tradição erudita, para vivê-la como insuperável, de tão admirável, é o que ele já fazia, assim, mais ou menos 20 anos antes, em 1961, na abertura dessa espécie de Borges por Borges que, pelas mãos de um pequeno pool de tradutores , todos experimentados, seja em tradução, seja na obra borgesiana - Josely Vianna Baptista, Heloisa Jahn e Davi Arrigucci Jr. -, só nos chega agora. Nada aí é novidade, já tínhamos lido tudo, aliás, por vezes, nas mesmas traduções, como no caso das de Josely, essa finíssima poeta, que integrou a premiada equipe da edição Globo das Obras Completas de Borges, lançada nos anos de 1990, no modelo da Emecé. Mas juntadas assim, pelo próprio autor, que, ainda por cima, pede a nossa indulgência, essas peças recortadas de quatro álbuns, de fato, dos mais antológicos, mesmo que muita coisa tenha acontecido depois - Ficções, O Aleph, O Fazedor, Outras Inquisições, O Outro, O Mesmo - viram uma caixa de maravilhas. Há mais a tirar de tal cofre. Pois se admitirmos, ainda, como é preciso fazer, que o escritor é um dos mais imensos do século 20, nenhuma dessas suas declarações, que o mostram escapando de ser enclausurado em alguma definição da literatura, nos impede de pensar que uma antologia de Borges feita por ele mesmo só pode conter algumas das melhores narrativas curtas e alguns dos melhores poemas do século, senão os mais perfeitos contos e versos do século. Obsessivo dos centros vertiginosos, o que ele faz aí é dar-nos indicações do caminho até o seu próprio centro. E o melhor é que, como este florilégio se organiza sem nenhuma preocupação com a cronologia, e como Borges é, no mínimo, duplo, temos aí todos os Borges essenciais que ao mundo se revelava - desde a França, onde ele é descoberto - nesses anos 60 de que data a Antologia Pessoal. Estamos falando, de um lado, do morador da biblioteca, do sujeito logosférico e labiríntico, do idealista absoluto, que sonda o caráter fabuloso da realidade, a possível ficção da nossa própria existência. Do Borges, enfim, que está na origem de todos aqueles textos mais para metafísicos em que sua literatura se torna comentário crítico, cruzamento de ficção e ensaio filosófico, a exemplo dos que estão recolhidos em Outras Inquisições. Esse é o Borges que sai da influência do também incorpóreo Macedônio Fernandez, um de seus mais perturbadores mestres, que ele conhece frequentando, nos anos 20, na volta da Suíça, as tertúlias do Café La Perla, na Plaza Onze, onde o "Sócrates argentino", como o chamam alguns, oficiava todos os sábados. As relações de mão dupla que se estabelecem entre ambos são tais que um dirá que usurpou a obra do outro, enquanto os dois fazem prosperar suas histórias sobre autores inexistentes. É Macedônio quem apresenta a Borges Berkeley e Schopenhauer, permitindo-lhe pensar que o mundo é representação ou sonho, e, sendo um satirista, o desvia para o humor, demovendo-o para sempre da tentação de se levar a sério. Estamos falando, de outro lado, do pintor da vida portenha, do retratista dos arrabaldes e dos pampas, do observador dos gaúchos e dos "compadritos", que são camponeses deslocados na cidade, onde se envolvem em cenas de valentia, a faca sendo a arma preferida deste outro Borges. Entra aqui o Borges que deplora estar envolvido com livros, metafísicas e literatura, e que teria preferido à carreira das letras a dos guerreiros, que foi a de todos os seus, todos heróis nacionais, até que a cegueira se abatesse sobre o seu pai, e lhe fosse transmitida, obrigando-o a nada mais ser que um "hacedor", tradução do inglês "maker", que é como os ingleses antigos chamavam os poetas. Este é o lado Evaristo Carriego, outro vulto da literatura local, a que está dedicado o primeiro livro do primeiro tomo das obras completas borgesianas, Fervor de Buenos Aires. Se nada deste volume entra na antologia, ele faz-se representar aí por tudo aquilo que, em Borges, é vida pulsante, realidade apreensível fora dos círculos do livro e das volutas das enciclopédias. Não que esses dois lados não possam ainda se misturar e se fundir, como no estonteante conto O Sul, este, sim, antologizado, confirmando-se, por antecipação, o que Borges ainda haveria de confidência a Carrizo: que era, de todos, o seu melhor trabalho. Nessa pequena obra-prima, a trama em abismo, com todos os tempos e os espaços embaralhados, e a personagem central que pode estar dormindo ou alucinando o que vamos lendo, é um puzzle lógico. Mas é também uma história singelamente real, girando em torno de um buenairense que - como, um dia, o próprio Borges - feriu-se na cabeça, ao subir uma escada e bater em algum objeto, foi parar no hospital, delirou muitos dias sob o efeito da anestesia, depois melhorou, deixou o leito, tomou um trem para o interior, parou num café e acabou tendo que se enfrentar com uns peões encontrados num café, que se puseram a provocá-lo. O conto acaba bem na hora em que o herói puxa o punhal, que talvez não saiba manejar. Não se trata tanto de reconhecer nessas diferentes temáticas e faturas o escritor realista e o fantástico, mas de ver como um imenso escritor é aquele que tem um estilo e um mundo. É o que esta Antologia Pessoal, que não é a única de Borges, mais revela. Leda Tenório da Motta, professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, tradutora e crítica literária, é autora, entre outros, de Proust - A Violência Sutil do Riso Antologia Pessoal Jorge Luis Borges Companhia das Letras 296 págs., R$ 39

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