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Movimentos de reflexão

Por Livia Deodato
Atualização:

Tente se lembrar quando foi a última vez que você se programou para ir assistir a um espetáculo de dança contemporânea brasileira. Não conte com a desculpa de que a ala masculina da casa tenha torcido o nariz e preferido ir ao estádio de futebol em final de campeonato. Porque a dança não costuma ter ingressos caros, há companhias de qualidade que se dedicam a estudos intensos e os transformam em belos espetáculos e... ainda assim raros são os trabalhos que conseguem lotar as salas da capital durante sua temporada. Afinal, qual é o problema? Por que essa arte acaba sendo menos popular que o teatro ou o cinema? Seria o caso de julgar a ausência das palavras ou a falta de formação de público? A reportagem do Estado ouviu bailarinos e coreógrafos de grupos com uma boa estrada já trilhada a respeito do tema que provoca debates acalorados, principalmente dentro de universidades dedicadas à compreensão do corpo em movimento. Um dos maiores desafios enfrentados pela classe é conseguir extravasar no palco todo o pensamento desenvolvido em salas de ensaio durante meses, de forma que o resultado não se torne hermético - ou, em se tratando de corpo, "não converse com o próprio umbigo". "Acho que ser ?desgostado? pelo público foi importante para as vanguardas europeias no início do século passado, mas hoje em dia buscar essa relação com o espectador me parece totalmente fora do lugar. Aprecio trabalhos que inovam e, ao mesmo tempo, dialogam com o público", diz Juliana Moraes, bailarina formada pela Unicamp. No entanto, alcançar esse feito não parece das tarefas mais simples. Que atire a primeira pedra o leigo que nunca saiu de um espetáculo de dança encucado: "O que será que queriam dizer?" Assim como qualquer arte, a dança contemporânea serve como espelho da sociedade e, portanto, não vai expor somente o que é belo. Ela também quer e deve funcionar como um instrumento de reflexão. "No caso do teatro, do cinema e até da música popular, se comparada com a erudita, existe um caminho mais curto entre a obra e o espectador. As palavras e o ritmo mais palatável facilitam a ligação do público com o que está sendo mostrado", opina Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo. "Muitas vezes, o que acontece não só no Brasil como em todo o mundo é o fato de a dança contemporânea se preocupar com um conteúdo muito profundo e se esquecer do que está sendo apresentado. O casamento entre conteúdo e forma é fundamental, para qualquer obra de arte", complementa. Se uma série de questionamentos iniciais provocam o desenvolvimento de um novo espetáculo, não necessariamente ao ser levado para o palco eles despertarão os mesmas sensações e sentimentos ao público. A vivência e a experiência de cada indivíduo sempre irá propor um entendimento único, que pode inclusive estender o horizonte sobre determinados estudos. "A dança tem diversas ramificações e existem públicos específicos para cada uma delas. É necessário localizar esse público e informá-lo sobre o que está sendo tratado", opina a coreógrafa Claudia de Souza, que apresenta no fim de semana Jogo de Dentro, no TD do Edifício Itália. A dança não nasce por acaso. Inicia-se a construção de uma nova obra a partir da memória, de uma música, de um livro, de uma reflexão cotidiana - o movimento e o pensamento caminham lado a lado e dificilmente se dissociam. "Acreditamos que o ?sentir? surge com a reflexão. O ?sentir? que aparece do nada é incompreensível", dizem os bailarinos e coreógrafos Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, que preparam O Animal Mais Forte do Mundo para estrear no Sesc Vila Mariana entre os dias 27 e 29 de março. "Falar de dança e começar pelo sentimento não é exatamente um bom lugar para nós, artistas pesquisadores e pensadores da dança. Se nos deixássemos levar pela emoção, poderíamos associar a nossa arte ao entretenimento." Sandro Borelli defende a pesquisa aprofundada para "não correr o risco de virar uma obra passional". "É preciso ter distanciamento, senão o risco de ela não amadurecer será grande", garante o coreógrafo que remonta Senhor dos Anjos, inspirada no poeta Augusto dos Anjos com estreia prevista para março na Galeria Olido, além de paralelamente criar um espetáculo baseado na figura mítica de Che Guevara. Deborah Colker também é partidária da opinião de Borelli. A coreógrafa, convidada para o novo show que o Cirque du Soleil vai estrear em maio no Canadá, acrescenta apenas o fato de que alinhada ao pensamento, à técnica e à criatividade está a beleza da coreografia. "Sendo dança, quem comunica é o movimento, que precisa ser belo, inteligente, sofisticado e eficiente." A unanimidade fica por conta da escassez de apoio e patrocínio, que limita atuações ousadas de artistas tão criativos. "Falta um projeto de cultura mais arrojado, uma distribuição de verba pública mais honesta. A continuidade, prezada por tantos grupos, é de extrema importância. O imediatismo destrói as possibilidades", afirma Borelli. Atraso no Lançamento do 6.º Programa de Fomento Na sexta-feira, representantes da área reuniram-se para debater a possível suspensão dos editais de 2009 da Lei de Fomento à Dança (14.071, de 18/10/2005). O programa, que entraria em sua 6.ª edição, tinha previsão de abertura em janeiro. Além disso, o 5.º Fomento já deveria ter sido pago no fim do ano passado, o que não ocorreu. Uma "manifestação de repúdio à arbitrária atitude da Prefeitura Municipal de São Paulo, do prefeito Gilberto Kassab, e da Secretaria de Cultura e seu secretário Carlos Calil" está sendo organizada pela classe na próxima sexta-feira, às 14 horas, no saguão da Galeria Olido, para um abaixo-assinado. A entrega do documento será protocolada para as 15 horas. Em comunicado enviado ontem, a Secretaria Municipal de Cultura alega que, "por motivos alheios à nossa vontade", o pagamento dos contratos referentes ao 5.º edital de Fomento à Dança passou a onerar o orçamento de 2009 e será imediatamente liberado. Assim, "em vista do contingenciamento de 1/3 do orçamento da Secretaria de Cultura, novos editais só poderão ser lançados à medida que os recursos sejam liberados". Teatro de Dança O polêmico projeto do Teatro de Dança, na Luz, será finalmente apresentado em abril pelos arquitetos suíços Jacques Herzog e Pierre de Meuron. O complexo de 32 mil m², que vai abrigar três teatros (um com capacidade de 1.750 lugares), estimado em R$ 300 milhões, iniciará sua construção daqui um ano.

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