Mostra 'Vizinhança' traz 21 obras recentes da artista Lucia Laguna

O contraste entre os morros e as pequenas casas de favela do Rio estão ilustrados nos quadros em exposição no Masp

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Por Pedro Rocha
Atualização:

A carioca  só foi descobrir a pintura ao se aposentar, após ter se dedicado, por anos, à arte de ensinar língua e literatura portuguesa. Começou a frequentar cursos livres da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e decidiu que viraria artista. Faltava definir, apenas, qual seria o objeto do seu trabalho. 

“Comecei a estudar porque não conhecia nada de pintura ou de história da arte”, revela Laguna, em entrevista ao Estado. “Fiquei anos tentando descobrir o que eu faria com a pintura. Queria muito, mas não sabia o que pintar.” Foi quando, após ter viajado por vários países estudando arte, viu que a resposta estava mais próxima do que ela imaginava. “Acabei descobrindo olhando pela janela. Do meu ateliê dá para ver, distante, o Morro da Mangueira, e as antenas dos prédios que fazem a Avenida Marechal Rondon.”

'Paisagem (Vila Isabel) n. 103', 2017. A vizinhança como inspiração Foto: EDUARDO ORTEGA

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O contraste entre os morros e as pequenas casas de favela, visto de seu ateliê/casa no bairro de São Francisco Xavier, na zona norte do Rio, inspirou a série de pinturas Entre a Linha Vermelha e a Linha Amarela, que tem alguns exemplares abrindo a exposição Vizinhança, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp. A mostra, com 21 obras recentes da artista, produzidas entre 2012 e 2018, já está aberta ao público, no mezanino do museu.

Após falar sobre o que via de longe, a partir da sua janela, Laguna resolveu tratar de temas ainda mais próximos, como a sua rua, sua calçada e até mesmo o seu jardim e o seu ateliê. “Comecei a fazer paisagens, mostrar o próprio estúdio por dentro e falar do meu jardim, que cultivo há mais de 40 anos.”

Lucia, hoje, não trabalha mais sozinha, conta com alguns artistas ajudantes em seu ateliê. O processo do dia a dia, no estúdio, é registrado com grande frequência e as fotos inspiram, algum tempo depois, novos quadros. A sequência da exposição, com sua série de paisagens, demonstra um pouco do que acontece nos bastidores. Todos os artistas trocam desafios e propõem ideias inusitadas. Os insetos do jardim, por exemplo, podem se misturar à arquitetura do subúrbio do Rio e a referências diversas do repertório de Laguna, como a arte japonesa. Não é raro ver quimonos, gueixas ou samurais em seus quadros. Elementos kitsch e de cultura pop, inspirados por histórias em quadrinhos, também se fazem presentes.

Aos 77 anos, Lucia Laguna ganhou reconhecimento dentro e fora do Brasil. Antes do Masp, uma de suas mais recentes exposições individuais foi realizada na França. A artista confessa que, quando começou a pintar, não imaginou que chegaria tão longe. “Foi uma surpresa, mas, ao mesmo tempo, atribuo tudo isso ao empenho em pintar todos os dias, com regularidade, de manhã e de tarde”, acredita. “Depois a gente vai ficando mais velho e vai relaxando mais um pouco a corda.”

Laguna se diz uma artista que brinca com as barreiras. “Se eu estou dentro de um lugar, sou espectadora do que está fora. Se estou fora, sou espectadora do que está dentro.” Por uma feliz coincidência, sua exposição no Masp está ao lado da mostra individual da mineira Sonia Gomes, que decidiu inovar e abrir as cortinas do museu, levando ainda uma de suas obras para o lado de fora da janela. A linha entre as exposições internas e o mundo exterior ao museu, talvez, nunca tenha sido tão fina. 

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A pintora carioca diz que não levanta bandeiras no seu trabalho, mas chega ao Masp no momento de transição entre dois anos temáticos na instituição, o de Histórias Afro-Atlânticas e o de História das Mulheres/Histórias Feministas. “A exposição dela faz um pouco essa passagem. Apesar de o seu trabalho não levantar bandeiras, o que é muito interessante é que a Lúcia olha bem para a história da pintura”, explica a curadora da mostra Vizinhanças, Isabella Rjeille. “No ateliê dela tem uma lista enorme de artistas da história da arte e a maioria deles são homens, as mulheres são poucas e boa parte contemporâneas. Mas a Lucia não se intimida, pega toda a referência e coloca para conviver com o subúrbio do Rio, com as casas da favela.” Segundo Rjeille, o trabalho de Laguna faz uma oposição à história da arte dominante, contada por homens brancos e europeus.

A mostra de Lucia Laguna no Masp está montada numa estrutura expográfica de madeira baseada em ideias de Lina Bo Bardi, a arquiteta responsável pelo desenho do próprio museu. Os cavaletes de vidro de Lina, presentes na exposição permanente do Masp, aparecem também, como traços brancos, num quadro especial feito por Laguna, Paisagem n.º 114, que encerra o percurso de Vizinhanças. Sua janela, agora estendida, chega ao museu paulista no quadro e faz referência a detalhes de obras importantes do acervo, como O Vestido Estampado (1891), de Édouard Vuillard, e peças de arte recém-adquiridas, como da artista Maria Auxiliadora. 

“Gosto muito de uma frase do Milton Santos, que diz que o mundo é o que se vê de onde se está”, diz Lucia, ao justificar o quadro feito especialmente ao Masp, e doado ao acervo museu. “Se vou a algum lugar e resolvo incluí-lo na minha pintura, está tudo bem. Onde eu estou, a pintura está também.”

LUCIA LAGUNA. Masp. Av. Paulista, 1.578, tel. 3149-5959. 4ª a dom., 10h/18h; 3ª, 10h/20h.R$ 17 e R$ 35. Até 10/3 

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