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Mostra: trivialidade e loucura

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Por Redação
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''''Ontem fui à Mostra. Assisti ao filme Control'''', ela disse orgulhosa e esperou a minha reação. ''''Quando fui comprar, estava esgotado. Como você conseguiu?!'''', perguntei. ''''Comprei pela internet. Tinha muitos lugares na platéia. A sala não estava lotada. São os credenciados, que pegam os ingressos e não vão. Perdeu, playboy'''', riu, depois de me humilhar. Ela conseguiu! Soberba, vai passar o dia ligando para os amigos e contar que conseguiu ver um filme da Mostra dos mais disputados. Será invejada e paradoxalmente admirada. Se conseguir assistir a 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, o romeno Palma de Ouro em Cannes, abriremos uma comunidade no Orkut, relatando o seu sucesso. Se conseguir ver o do David Lynch, Império dos Sonhos, e entender, faremos uma camiseta em sua homenagem. Acredito que a Mostra de Cinema seja o maior evento cultural da cidade. Na cerimônia de inauguração, tanto o prefeito quanto o governador acataram a sugestão do apresentador Sérgio Groisman de transformá-la em Patrimônio Cultural. São duas semanas em que o paulistano mobilizado faz planos, troca dicas, segredos, e lota cinemas, 455 filmes de 77 países que envolvem 20 salas - grandes shoppings (Morumbi, Eldorado, Frei Caneca), cinemas alternativos e de arte (Olido, HSBC, Bombril, Estação, Espaço Unibanco), o Sesc, a Prefeitura e o Estado, cinematecas e museus -, dias que afligem o público fanático ou não. Afligem? A Mostra tem um calcanhar-de-aquiles, que parece não ter solução: a venda de ingressos. Justamente a venda de ingressos, que injeta capital sem dolo ao Fisco na veia do evento apaixonante. O tormento que é para o cidadão comum comprar um ingresso, leva muitos deles a desistirem de participar da festa. A logística serve aos aficionados. Não existe uma central de vendas. A que existe, no Conjunto Nacional, atende só aos credenciados. Raciocínio rápido: por que então não se credenciar? Porque os pacotes de 20 filmes, ao preço de R$ 150, acabaram no primeiro dia. Restaram os de 40 filmes (R$ 260). Para se comprar um ingresso com antecedência, você deve se dirigir ao próprio cinema. Corre o risco de perder a viagem. Para comprar ingressos pela internet, o site da Mostra encaminha para o ingresso.com. Tudo bem organizado. Escolhido o filme, aparece então ''''não existem mais sessões disponíveis''''. Supõe-se que isso significa ''''ingresso esgotado''''. Então, para escolher outro filme, já que a grande maioria parece estar sempre esgotada, digo, com sessões indisponíveis, o procedimento tem que ser reiniciado. Não se pode comprar ingresso para o mesmo dia. E só se pode reservar para os três dias posteriores. Não há outro jeito, e todos os anos é a mesma apreensão: quer-se pagar por um legítimo produto cultural, e muitos não conseguem. Ou será que a graça é essa, criar uma espécie de gincana e dar a sensação de vitória e êxtase ao indivíduo que gosta de cinema e consegue comprar um ingresso para pelo menos um filme badalado da Mostra, e esnobar os amigos? Claro que não deve ser nada fácil criar um sistema único que integra e se comunica com as bilheterias das rede Cinemark e Artplex, de grupos distintos, como HSBC, Reserva Cultural e Espaço Unibanco, unir Sesc ao Centro Cultural Vergueiro, Memorial da América Latina e cinematecas. Então, que tal criarem saídas alternativas? Por exemplo, cinemas 24 horas, com sessões dos filmes que nitidamente serão concorridas, tal qual eventos que invadem a madrugada e provaram ser viáveis, como Virada Cultural, Satyrianas (que este ano esteve digno de Caras, com Adriane Galisteu e Gerald Thomas), Odisséia de Cinema e Noitão do HSBC? PS.: Sim, eu também reparei que não perguntei se o filme Control é bom. O que importa é assistir. Consegui no fim de semana assistir a dois filmes! Claro que tive de comprar os ingressos oito horas antes no cinema. Comprei logo duas sessões coladas: Sympathy for the Devil, retrato renegado de Jean-Luc Godard sobre os ensaios da gravação da música dos Rolling Stones, e Kurt Cobain, documentário sobre o líder do Nirvana, a partir da longa entrevista que ele deu para o biógrafo Michael Azerrad (em momentos distintos) até um ano antes de se matar. O filme de Godard é Godard. Já que a banda faustiana foi acusada de afanar músicas de negros americanos pobres, embranquecer o blues, o soul e faturar bilhões, o documentário intercala imagens da banda com discursos e entrevistas dos Panteras Negras. Ao mesmo tempo, jovens passeiam por Londres pichando pelos muros lemas de esquerda, como ''''cinemarxismo''''. O filme dá sono. Mas vale para quem gosta de rock e da banda. Acompanham-se os ensaios dela. Descobre-se como uma música emblemática como Sympathy foi arranjada casualmente, e que a versão original era bem mais lenta do que a suingada que ficou para a eternidade. Já o segundo filme mostra um Cobain diferente da imagem que ficou. Relaxado, ele fala em off sem censura de abuso, narcóticos e solidão, com humor, ironia e uma incrível clareza. Sabe-se que se viciou em heroína por causa de dores na coluna e no estômago. Fala com carinho da filha. Surpreende quem o imaginava bipolar, bêbado e perdido. O que se destaca é a linguagem do documentário, que não usa imagens da banda ou do protagonista, a não ser poucas fotos, utiliza músicas de outras bandas e retrata a atmosfera e os locais narrados, espelhando o ícone de uma geração com pobres mortais. Bem mais envolvente do que o primeiro filme. Prova que o cinema evoluiu. Em 1993, conversei com o casal Courtney Love e Kurt Cobain no lobby do Hotel Maksoud. Ele, avesso a jornalistas, chegou a agredir profissionais no hall. Courtney passou por mim, viu um grande crachá escrito PRESS no meu peito e disse com desprezo que eu não tinha cara de jornalista. Contei que eu era escritor. Ela anunciou o seu ódio contra a imprensa. Então, sentaram-se comigo, e tomamos um longo café. Falamos de literatura. Em nada lembrava o casal que causava tumultos por onde passava. Ao assistir ao documentário, nota-se o ódio que Cobain sentia pela imprensa (''''99,9% dos jornalistas são nojentos'''', diz). Só então entendi porque há 14 anos o meu crachá PRESS foi a primeira coisa que chamou a atenção. No fundo, desenvolvemos uma conversa bem comum, para um casal tão incomum. Existe muita trivialidade na loucura.

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