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Mostra ‘Histórias Mestiças’ reúne 400 obras sobre nossa herança artística

Arte africana e ameríndia é tema de exposição que abre nesta sexta-feira, 15, no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravidão, em 1888. O País recebeu nada menos que 40% dos africanos trazidos à força para a região. Foram 3,8 milhões de vítimas do tráfico negreiro, mais do que os 2,5 milhões dos colonizadores portugueses estabelecidos na colônia no século 16, dos quais só 10% eram mulheres. O resultado foi a criação de um Brasil africanizado - e miscigenado. Por falta de mulheres, os colonizadores violentaram escravas negras e ameríndias, gerando descendentes mestiços e estigmatizados. A arte africana não teve melhor sorte por aqui. Muito menos a arte dos índios. A exposição Histórias Mestiças, que será aberta nesta sexta-feira, 15, no Instituto Tomie Ohtake, busca corrigir essa distorção, ao mostrar como essas manifestações - tanto a dos africanos como a dos aborígines - marcam o imaginário artístico brasileiro.

Com curadoria do crítico Adriano Pedrosa e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, a exposição, segundo seus organizadores, não veio, porém, para explicar, mas para “friccionar”. Histórias coloniais, justifica a antropóloga, “são sempre histórias mestiças, híbridas”. Mas a mostra não dá trégua para uma história em que o nativo é sempre tratado como “portador de uma ‘falta’ fundamental” e o africano é invariavelmente descrito como “ingovernável”, como observa Lilia Schwarcz.

Albert Eckhout, Mameluca, 271 x 170 cm, Óleo sobre tela, ©The National Museum of Denmark, Ethnographic Collections Foto:

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No mundo contemporâneo, que vê ressurgir teorias racistas, a mostra é uma provocação, admite o curador Adriano Pedrosa. “A própria noção de mestiçagem, definida como o cruzamento de raças e culturas, pode transformar-se numa perigosa ideologia, ao nomear todos os indivíduos como mestiços, apagando diferenças e mascarando, assim, preconceitos de raça, sobretudo no Brasil”, argumenta, lembrando que a exposição - uma soma de objetos de diferentes origens - deriva de outra mostra, Ficciones, que organizou com o crítico Ivo Mesquita mo Museu Nacional Reina Sofia, em Madri, em 1999.

Ficciones, no entanto, era um projeto embrionário sobre o labirinto (antropológico, sociológico) latino. “Esta é uma exposição mais focada no Brasil, em que avançamos além do resgate dos ritos canibais dos tupinambás por Oswald de Andrade.” No novo manifesto antropofágico de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, a dupla propõe devorar histórias africanas e ameríndias, seguindo a tendência de descolonização da arte contemporânea, que coloca em segundo plano a narrativa eurocêntrica na arte para incorporar histórias marginais, mestiças.

Assim, já na primeira das sete salas da exposição, o visitante vai encontrar um novo mapa em que a América do Norte não aparece ligada à América do Sul, mas ao continente africano, na versão do artista contemporâneo afro-americano Hank Willis Thomas, de 38 anos, ao lado de uma escultura do baiano Emanoel Araújo, que retrata um navio negreiro, e um mapa com o castelo da Mina em Gana, primeira fortificação portuguesa na África. A “fricção” continua na segunda sala da mostra, em que o esboço da tela A Negra (1923), da modernista Tarsila do Amaral, convive com uma máscara africana, o desenho de um velho escravo de Lasar Segall e as representações fantasiosas do primeiro homem americano e de uma mameluca pelo holandês Albert Eckhout (1610-1666). 

A exemplo desses dois últimos retratos, pertencentes ao Museu Nacional da Dinamarca, há obras na exposição provenientes de instituições estrangeiras raramente vistas por aqui. E também brasileiras. O Museu Imperial cedeu um retrato da princesa Isabel que, na mostra, teve de se resignar a ficar a alguns centímetros do chão, bem abaixo de uma série de fotos de escravos - uma pequena perversidade do curador Pedrosa. Entre as raridades estão duas pinturas de negras por Volpi e Iberê Camargo. Domina a sala o autorretrato da contemporânea Adriana Varejão, em que a artista pintou o rosto com grafismos indígenas.

Outro contemporâneo selecionado pelos curadores é o performer mineiro Paulo Nazareth, ex-faxineiro, guardador de carro e muambeiro. Mestiço, ele levou índios para a sua sala na Bienal de Veneza (2013) que relatavam para os visitantes a violência sofrida por suas etnias, tema desenvolvido na terceira sala pela fotógrafa Claudia Andujar, ao retratar ianomâmis com números no pescoço (da série Marcados), que remetem às vítimas do nazismo.

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“A porta da exposição mostra que nossas histórias mestiças são violentas, marcadas antes pela discriminação do que pela harmonia”, diz Lilia Schwarcz, questionando a nossa “democracia racial”, em que “a possibilidade de inclusão é exclusão”. Apontando para uma gravura do francês Debret, que traz o sofisticado grafismo indígena, ela conclui que um dos grandes desafios da mostra é justamente provocar o público a deixar de lado conceitos consagrados - o construtivismo como herança europeia, por exemplo - para abraçar a arte mestiça.

HISTÓRIAS MESTIÇAS

Instituto Tomie Ohtake. R. Coropés, 88; 2245-1900. 3ª a dom., 11 h / 22 h. Grátis. Até 5/10.

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