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Morricone, atento às notas bancárias

Houve um tempo em que o maestro gostava mais de notas musicais; seu concerto, anteontem, prova que elas estão em baixa

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A divisão do programa do concerto de Ennio Morricone no Teatro Alfa, anteontem, parecia clara: na primeira parte seriam tocados os temas mais populares do maestro e, na segunda, os mais sofisticados. Ou seja, a platéia teria de suportar a breguice dos temas híbridos compostos para os spaghetti westerns de Sergio Leone e os temas açucarados de Tornatore para ouvir, após o intervalo, fragmentos de suas trilhas mais ambiciosas - como as de Marco Polo, Sacco e Vanzetti e A Missão. Seria simples se não fosse o abismo entre o que está registrado nas trilhas originais e o que se ouviu no concerto, a despeito de serem os mesmos arranjos. O que muda? A qualidade. É diferente ouvir os temas de A Missão executados pela London Philharmonic Orchestra e os músicos da Roma Sinfonietta. Vale o mesmo para o coro. Faltou vigor ao Coral Paradiso dirigido pelo maestro Mário Zaccaro. Mais que isso: entendimento das partituras. Exemplo mais evidente desse descompasso entre ler e entender uma partitura foi o do tema principal de Queimada, filme político de Pontecorvo sobre um comerciante inglês às voltas com o regime escravagista numa republiqueta latino-americana. Teria sido conveniente que os integrantes do Coral Paradiso tivessem assistido ao filme antes de cantar um hino revolucionário como Abolição com o vigor de pardais anoréxicos. E o que dizer do mesmo coral em Here''s to You, tema que já foi defendido - com melhor sorte e entusiasmo - pela engajada Joan Baez em Sacco e Vanzetti? Pergunta-se, então: o que leva fãs de Morricone a pagar uma fortuna por um ingresso de um concerto senão o fetiche de ver um ganhador de Oscar honorário reger as próprias composições - e de modo inferior ao registro original? Tudo nesse concerto foi um equívoco. A soprano Susanna Rigacci tentando malabarismos vocais para cantar o tema de Três Homens em Conflito beirou o bizarro. Melhor fez a orquestra, que entendeu a sátira musical de Morricone para o filme de Leone, lançado há 42 anos justamente para parodiar o esquematismo do faroeste americano. A seção de sopros da Roma Sinfonietta - que não é das melhores - aproveitou o tom jocoso e exagerou na paráfrase naturalista da trilha de Morricone, que imita o gemido de um coiote em resposta a cada um dos instrumentos que identificam os três personagens masculinos do filme - ocarina, flauta e voz humana. É possível tocar um tema como esse sem entender o contexto para o qual foi escrito ou a inteligência com que Leone lidou com a natureza predatória desse trio, disputando ouro em meio ao caos de uma guerra civil? Difícil. Morricone é o principal culpado por esses equívocos. O maestro parece, hoje, mais interessado nas notas de sua conta bancária que nas notas de suas partituras. Após compor cinco centenas de trilhas para o cinema - 80 por cento delas imprestáveis para filmes igualmente deploráveis -, Morricone não faz concertos para divulgar suas trilhas mais experimentais ou que exigiram dele maior rigor na pesquisa musical - Cinzas no Paraíso, La Califfa, Novecento, O Deserto dos Tártaros, A Batalha de Argel, Giordano Bruno ou Teorema, para citar apenas 7 de suas 504 trilhas. Rege o que o público mediano quer ouvir, temas românticos como os de Cinema Paradiso (aliás, um dos raros bem executados, pela pianista Gilda Buttà). De qualquer forma, a segunda parte do concerto teve momentos que lembraram o melhor de Morricone, regendo três dos mais tocantes temas de A Missão (Gabriel''s Oboe, Falls e Come in Cielo Cos in Terra). Está certo: o oboísta Luca Vignali não é Joan Whiting, a intérprete da trilha original, mas quase morreu de apoplexia para alcançar as notas mais altas. Valeu o esforço.

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