Morreu a narrativa! Vida longa à narrativa!

Criação de centro para estudar futuro da arte de contar histórias causa indignação

PUBLICIDADE

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Já anunciaram o fim da História (e ela não só não morreu como voltou com redobrado ânimo), a morte das salas de cinema, da mídia impressa (supostamente já na UTI), do telefone fixo, do CD, do DVD. E do que mais mesmo? Teatro, rádio e cinema já subiram no telhado há tanto tempo que até desistimos de encomendar flores. Ah, sim, tem o livro, prestes a ser substituído por um avatar eletrônico, o e-book: futuramente kindle, consoante o efeito gilete, que virou sinônimo de lâmina de barbear. Nesse turbilhão de obituários, um novo moribundo baixa ao hospital: a narrativa. Ou, se preferirem, a narração. Diferenças sutis. Narrativa: a maneira de narrar e, por extensão, conto, história. Narração: ato ou efeito de narrar. A língua inglesa resume ambas numa só palavra "storytelling" (narração de histórias). Não privilegio o inglês por pernosticismo, anglofilia, nem por seu vigor sintético, mas porque a sentença de morte da "storytelling" (doravante, narrativa) foi lavrada no Reino Unido e em sua mais famosa ex-colônia, a América do Norte. Também lá, diga-se, usa-se o vocábulo "narrative", mas como este, paradoxalmente, ganhou foros, nos últimos tempos, de palavra-ônibus, de uso intensivo em qualquer contexto (em 2.697 textos baixados da internet para o meu disco rígido encontrei 968 vezes a palavra "narrative", referindo-se a qualquer tipo de articulação: mental, artesanal, política, etc.), vivíssima, pois, ela está. Ao contrário da "outra" narrativa, a "storytelling", tal qual a conhecemos desde... desde sempre. Sua periclitância pode ser atribuída a uma conjugação de fatores. Vale dizer, a um conluio armado pelo crescente desinteresse (sobretudo entre os jovens) pela leitura, pelo indigerível acúmulo de informação circulante, pela predominância da teoria sobre a produção literária no mundo acadêmico, pelo desvio da já mínima atenção do homo lector contemporâneo por celulares e outros gadgets eletrônicos, pela onipresença de telas e monitores (até em mictórios públicos já instalaram televisores), pela empobrecedora estenografia digital imperante nas redes de relacionamento virtual, e pela facilidade com que instituições de ensino se rendem ao que têm na conta de inevitável e irreversível: a obsolescência do livro. Várias escolas secundárias dos EUA (repito: dos EUA, não da Somália) desativaram suas bibliotecas nos dois ou três últimos anos. "Estaríamos diante do esgotamento de todas as narrativas?", perguntou-se Sam Leith, nas páginas do Daily Telegraph. Assustara-se com o anúncio, no último fim de semana, de um centro de pesquisas sobre o futuro da arte de contar histórias, a ser criado por um consórcio de acadêmicos do Laboratório de Mídia do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e ex-executivos de Hollywood. Leith acredita piamente na imortalidade da arte de contar histórias e não fecha com o diagnóstico do Center for Future Storytelling. Para o seu fundador, o ex-presidente da Paramount, David Kirkpatrick, a velha maneira de se contar uma história, com começo, meio e fim, talvez não faça mais sentido no mundo de hoje, daí a necessidade de se descobrir que modos narrativos poderão sobreviver no século 21. Bobagem. Kirkpatrick, que ao Centro doou do próprio bolso US$ 25 milhões, fala como um prospector de petróleo: "Precisamos encontrar novas reservas ficcionais." Se fosse mais dado a leituras do que a ver filmes, ou ao menos tivesse tomado conhecimento de um artigo-pesquisa divulgado em setembro pela site da revista Scientific American, com o título de The secrets of storytelling: Why we love a good yarn (Os segredos da narração: por que adoramos uma boa história), não estaria tão obcecado com a questão da "falência da narrativa". Kirkpatrick reclama, com razão, da falta de roteiros com as reviravoltas e desfechos surpreendentes de antigamente. E, com mais razão ainda, da preponderância da parafernália audiovisual sobre as intrigas, os conflitos dramáticos, os diálogos, limitação esta agravada pelas produções seriais, tipo O Homem-Aranha, forçosamente desprovidas de um fim, de um arremate satisfatório. Ou seja, começo tem, meio também, mas o fim nada mais é que uma porta aberta para a próxima atração da franquia. A narrativa não faliu. O que faliu foi o atual sistema de inventar e contar histórias do cinema americano, que era muito mais inventivo e sedutor quando apenas manietado pelo Código de Censura e pelo autoritarismo de tais e quais produtores. Ligado ao Centro, Peter Guber, produtor da série Batman e professor de um curso sobre narração na Universidade da Califórnia em Los Angeles, amplia o naipe de queixas, atribuindo parte da atual pobreza ficcional dos filmes de Hollywood à pressa com que são produzidos para cumprir as datas, rigidamente estabelecidas, de lançamento. "Se as histórias andam ralas e repetidas, além de abafadas por agressivas pirotecnias, truques computadorizados e estupefacientes sonoros, a culpa não é tanto de um suposto esgotamento de reservas ficcionais e roteiristas talentosos, mas, acima de tudo, da complacência dos produtores em relação a fórmulas que, equivocadamente, consideram infalíveis", diagnosticou Guber. Na mosca. Enquanto isso, na Inglaterra, outro grupo de sumidades, da Universidade de Manchester e da London School of Economics, percorria o caminho inverso, dando loas à ficção, à narrativa, ao perene sucesso de uma boa história ou de uma história bem contada. "Contar histórias é um dos mais antigos métodos da humanidade para armazenar informação e representar a realidade. Houve um tempo em que relatos, poesias e peças teatrais, a ficção literária, em suma, eram aceitos do mesmo jeito que o discurso científico o é, hoje em dia." Assim principia um dos vários pareceres do grupo, de resto, isento, por sua formação científica, de qualquer suspeita corporativista. Sua continuação não é menos surpreendente: a ficção tem feito mais pela compreensão de determinados problemas do mundo real que a produção acadêmica de sociólogos, antropólogos, economistas e outros inquilinos das estantes de não-ficção. Mesmo salientando que "os poetas não podem substituir os ministros das finanças", um dos integrantes do grupo, o professor Michael Woolcock, reconhece: "Muitos romances fazem um trabalho de análise e divulgação da realidade bem mais produtivo, diversificado e influente que os estudos e relatórios de especialistas." Trilhando essa rota, chegaríamos até Homero. Mas os exemplos a favor dessa tese mais citados são autores recentes como Khaled Hosseini e Aravind Adiga. Com O Caçador de Pipas, Hosseini chamou mais a atenção do mundo para a opressão do povo afegão do que todos os relatórios da ONU e todas as campanhas na mídia contra o Taliban. Nenhum ensaio sobre os estragos que a modernidade desenfreada impôs à Índia obteve o mesmo impacto internacional do romance O Tigre Branco, de Adiga, recém-traduzido pela Nova Fronteira. "Crise financeira? Releiam Dickens", recomendou, dia desses, um jornalista londrino, declaradamente motivado pela exibição, na BBC, de uma adaptação do romance Little Dorrit, publicado por Charles Dickens, sob a forma de folhetim, entre 1855 e 1857. "O complemento perfeito para a atual falta de crédito na praça", dizia a propaganda do telefilme, oportunista mas procedente. A obra de Dickens é um curso sobre as incertezas financeiras de qualquer época. Little Dorrit é uma sátira às agruras dos que não tinham como quitar suas dívidas na Inglaterra de meados do século 19. Quem devia era trancafiado com a família numa prisão especial, até quitar as dívidas, sabe-se lá Deus como, já que, presos, os inadimplentes não podiam trabalhar. A pequena Dorrit nasceu e cresceu numa daquelas prisões. Sua história continua atual. Com ou sem crise financeira. Porque a única coisa capaz de matar uma boa narrativa é um mau narrador.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.