Montanha mágica

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Tal e qual o tempo, o espaço gera o olvido; ele o faz, porém, desligando a pessoa humana das suas contingências e pondo-a num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Thomas Mann, Montanha Mágica Volto das "férias" renovado porque encontrei uma montanha mágica digna de Thomas Mann. Elas são legião. Mas é preciso descobri-las e, encontrando-as, ter a coragem de subir ao seu cume situado a um dedo do céu. Dali, dizem, se não se escuta o canto dos anjos e a face de Deus (como ocorreu com Moisés), não há como deixar de ver a visão da trivial planície de onde se veio, que obriga a separar o grande do pequeno. Desta feita, minha montanha mágica estava no Estado de Vermont, Estados Unidos, numa instituição de ensino onde falei de livros e idéias: o Middlebury College. Não pense o leitor que a magia estava nas instalações e riqueza da escola, dentro daquele batido figurino dos triviais e grosseiros turismos em Miami, com os quais se afirma que até o papel higiênico da Flórida é melhor do que o nosso. Nada disso! Nessa experiência, ocorrida graças ao convite da professora Luci Moreira, diretora da Escola de Português de Middlebury, o mágico localizou-se pelo fato de estar visitando uma escola de línguas americana, situada em plenos Estados Unidos e, nela, ser obrigado a falar exclusivamente o português! De fato, o Colégio Middlebury é a melhor escola americana no ensino de línguas e o seu método é o da "imersão". Ali, cercado por belíssimas montanhas verdes (que dão nome ao Estado de Vermont) e de um céu que se alterna com uma rapidez má educada do estival ao chuvoso, um grupo de professores e um conjunto de alunos fazem um pacto para ensinar (e aprender) a fonte fundamental de nossa visão de mundo: os idiomas que falamos, mas que aprendemos sem escolher e, principalmente, sem nos darmos conta da profundidade que ocupam dentro de nossas consciências já que, sem eles, não teríamos alma. Em Middlebury ensina-se em tempo integral árabe, chinês, francês, alemão, hebreu, italiano, japonês, russo, espanhol e português. Na primeira refeição, cercado pelos meus futuros alunos, compreendi tudo. Não se tratava apenas de ter que falar o português, era proibido - aí estava o elemento extraordinário - falar inglês! Ao ver o absurdo da proposição, penetrei no universo mágico dos cursos de aprendizado de línguas, nos quais o centro - inventado, por sinal, no Middlebury College no ensino do alemão, no limiar do século passado - era estar no que eles chamam de "em idioma". Ou seja: viver concretamente a vida por meio da língua que se deseja aprender, recriando "em idioma" situações culturais e sociais concretas. No caso da nossa escola, havia o aprendizado em português do samba, da capoeira, da culinária; bem como a prática dos esportes, os clubes de poesia, de notícias (foi feito um jornal e havia um programa de rádio) e até um grupo do bambolê, bem como uma festa de São João e um carnaval. Como é que isso se sustentava? Simples. O principal rito de entrada na escola é um "pledge", um compromisso solene e público prometendo que não vão usar sua língua materna durante o tempo em que estiveram associados ao aprendizado da língua que elegeram. Romper com o juramento conduz à expulsão do curso! Disso decorrem muitas conseqüências. Vi, com estes olhos que a terra há de comer, gente que jamais havia falado uma palavra de português, recitando Fernando Pessoa, Bandeira e Affonso Romano de Sant?Anna. Observei americanos virando brasileiros, estabelecendo contato visual e gestual obrigatório quando passavam uns pelos outros, abandonando o viver dentro das bolhas individualistas ianques que não demandam o reconhecimento de ninguém. Com isso, tomei consciência do incrível trabalho do idioma como perspectiva e classificação arbitrária e inventiva do mundo, conforme aprendi na velha antropologia de Durkheim e Mauss; de Boas, e de Sapir e Whorff; de Saussure e de Lévi-Strauss e Louis Dumont. Quero louvar o espírito destemido do Middlebury College. Pois o ensino de línguas rompe com o isolamento ontológico que é o centro da arrogância e das superioridades, e abre espaço para outros modos de ler e de sentir o mundo e a vida. No contexto americano, no ambiente de uma sociedade enfatuada com seu próprio progresso, riqueza e sucesso material, isso equivale a uma luta contra o famoso monoglotismo e com um enraizado "consenso do inglês", esse pacto implícito que é muito mais grave do que o famoso "consenso de Washington". Ensinando todas essas línguas; falando tudo, menos o inglês, Middlebury transforma-se, como bem sabem os alunos e professores da escola de alemão, numa Der Sauberberg, numa montanha mágica. Sem uma língua dominante, colonial, oficial e privilegiada, cria-se uma Torre de Babel. Um ponto de vista descentrado, sem o qual jamais se descobre que o humano jaz justamente nessas possibilidades diversas e generosas de criar e ler o mundo. Agradeço à diretora Luci Moreira, aos meus alunos e ao Middlebury College essa magnífica experiência de viver, com Celeste, numa montanha mágica.

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