Montando deliciosos quebra-cabeças sonoros

CD assume um saudável atrevimento e brinca com peças do compositor barroco alemão, revelando jogos de prazeres

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Crítico arguto e ouvinte refinado da música do passado, Debussy reclamava dos músicos do começo do século 20 por interpretarem Bach (1685-1750) de "maneira engomada". Pedia que tocassem de modo mais livre. Ele teria adorado, sem dúvida, os incríveis atrevimentos de Glenn Gould. E também ao menos Edna Stern, entre os pianistas das novas gerações, a julgar por badalados lançamentos dos últimos anos. Alguns teimam na "maneira engomada" e temperam ausência de coragem com anêmicas leituras. Edna ouviu o clamor debussysta e assume um saudável atrevimento ao nos fazer ouvir o "seu" Bach. Destrói o petrificado conceito da fidelidade à obra, resultante da ossificação de um cânone de obras-primas que jamais podem ser picotadas. O conceito de obra musical fechada não existia no tempo de Bach. Ouça faixa do álbum Bach Nada mais justo do que assumir hoje a liberdade estética do barroco. Edna mistura as obras de Bach e as reorganiza, sem distinguir as peças vocais e as instrumentais. Constrói quatro blocos musicais que adquirem novos significados. Nesta surpreendente gravação, cada bloco abre com uma transcrição de Busoni de um coral de Bach, seguido de três prelúdios e fugas do Cravo Bem Temperado cada. E, suprema ousadia, num dos blocos o coral nem é de Bach, mas de outro B famoso: o quinto de uma série de onze corais para órgão composto por Brahms em 1896 sob o impacto da morte de Clara Schumann. Cada bloco "conta" uma história, apesar da liga superabstrata que une o coral a cada grupo de prelúdios e fugas. O primeiro abre com o famoso "Nun komm, der Heiden Heiland" (Venha, Salvador dos Pagãos), da cantata BWV 61; em seguida, os prelúdios. "Para mim, dó menor se associa à ideia de que é preciso batalhar na vida; e mi bemol maior favorece uma espécie de libertação do ser''. A ideia de abrir com um coral humaniza os prelúdios e fugas. "De certo modo, torna os prelúdios menos abstratos. Quero que sejam ouvidos como se fossem uma cantata, com uma história", escreve a pianista no encarte. Cabe perguntar: quem foi que disse que não se pode juntar transcrições com obras originais do Kantor de Leipzig? Quem decretou que não se usa pedal em Bach? Com que autoridade? A do chamado olhar histórico retrospectivo? Isso é de um ranço preservacionista detestável, consequência das camadas de distorções que normalmente o tempo joga sobre a produção dos Grandes Compositores (assim mesmo, com maiúsculas). Em seu diário virtual, ela diz que o "que torna a música de Bach tão poderosa é sua justaposição da rigidez de estrutura, o vigor do ritmo (metáfora da inevitabilidade da vida, da batida do coração) com as melodias de sucesso que simplesmente não saem da cabeça de quem as ouve, seduzindo-nos por sua beleza. Sua música exige uma interpretação vocal. O pianista deve deixar vibrar as cordas de seu instrumento como um cantor". É verdade. As melodias de Bach grudam nos ouvidos, igualzinho às de uma boa canção popular. É assim que Edna encara esses momentos em Bach, para horror dos puristas. E as interpreta como se as estivesse cantando. Outra surpresa é a ênfase inesperada nos baixos, que soam com riqueza harmônica. O lance decisivo de Edna é brincar com a música sacrossanta de Bach. Ela parece tornar públicos seus prazeres privados. E o jogo musical, sabe-se, traz consigo toda uma vida de afetos. Tinha razão Debussy quando falava que "o velho Bach, que engloba toda a música, preferia o jogo livre das sonoridades". Ouvir Edna Stern é quase como espiá-la em seu estúdio, montando estes deliciosos quebra-cabeças. É tão divertido quanto ouvir o notável pianista de jazz Bill Evans, num raro CD que o captura folheando prelúdios e fugas do Cravo. Ele não os toca na íntegra. É esta informalidade que está presente na sua rigorosa e sanguínea interpretação de Edna. Lembra Gould pelo impacto emocional. Mesmo que sua leitura seja antigouldiana por excelência.

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