Monólogos retratam a solidão

Beatriz Segall reencontra Grupo Tapa em história sobre falta de comunicação

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Por Ubiratan Brasil
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O diretor Eduardo Tolentino, do Grupo Tapa, gosta de aprofundar as ideias dos textos que leva para o teatro - não basta apenas encenar, mas extrair o máximo possível de significados dos diálogos. Por isso, adotou a filosofia de só montar as peças para as quais encontra os atores ideais. É o que explica a montagem de O Tempo e os Conways, em 1986, de Do Fundo do Lago Escuro, em 1997, e agora, do monólogo A Senhora das Cartas, que reestreia amanhã, no Teatro Eva Herz - todos contam com Beatriz Segall no elenco. "Ela, como eu, tem um prazer enorme em dissecar um texto teatral", conta o encenador, lembrando que, durante os ensaios, ambos trabalharam cada palavra da peça escrita pelo inglês Alan Bennett. "Há uma simplicidade que é apenas aparente no monólogo e chega a mudar meu ponto de vista", confirma Beatriz. "Tanto que, no início, eu não achava graça, como agora." Trata-se de uma das qualidades do humor inglês. A Senhora das Cartas é uma das 13 histórias curtas que o crítico britânico Alan Bennett escreveu para a série televisiva Talking Heads, levada ao ar pela BBC nos anos 1980 antes de chegar aos palcos, na forma de monólogos. "Praticamente não houve nenhuma modificação na transposição", comenta Tolentino, que escolheu os quatro textos que formam o projeto Retratos Falados, dividido em dois programas (veja no alto). Em seu monólogo, Beatriz vive, em aproximadamente 35 minutos, Irene, mulher tão inconformada com o mundo que a rodeia que é capaz de escrever continuamente para jornais e órgãos públicos. Uma obsessão capaz de confundir o espectador: seria apenas um serviço comunitário ou uma forma de sublimar sua solidão? "As cartas parecem ser sua única forma de comunicação", observa a atriz que, no entender de Tolentino, exercita naturalmente o mesmo estilo de humor, mais britânico. "Como eu, Beatriz também é ácida em alguns de seus comentários que, antes de provocar indignação, quer mesmo é despertar risos." Tal semelhança foi detectada logo que se conheceram, nos anos 1980, quando o Tapa ensaiava os passos que o transformariam em um dos mais sólidos e consistentes grupos teatrais brasileiros. Escrito por J. B. Priestley, O Tempo e os Conways foi encenado com sucesso nos palcos cariocas com Aracy Balabanian à frente do elenco. O Tapa ainda não possuía os prêmios e o prestígio que tem hoje, mas, mesmo assim, Tolentino decidiu convidar Beatriz Segall para a temporada paulista, uma vez que Aracy não podia deixar o Rio. "Eu tinha assistido à peça e gostado muito", relembra a atriz, motivada a ingressar em tal aventura, em meio a atores jovens e desconhecidos. "Logo descobri que estava junto de um grupo talentoso e ciente do que buscava no teatro." Uma das grandes damas do teatro brasileiro, Beatriz acumula passagens pelo teatro Oficina (Andorra e Os Inimigos, ambos com direção de José Celso Martinez Corrêa), além de papéis escritos por Gianfrancesco Guarnieri (Marta Saré), Ibsen (O Inimigo do Povo), Shakespeare (Hamlet), Tennessee Williams (À Margem da Vida) e até de textos experimentais, como o do alemão Tankred Dorst (A Grande Imprecação Diante dos Muros da Cidade) ou do brasileiro Luís Alberto de Abreu (A Guerra Santa). Graças a esse notável diapasão cênico, ela logo se tornou a escolha natural de Eduardo Tolentino para a montagem de Do Fundo do Lago Escuro, escrito por Domingos Oliveira em 1979. "Trata-se do retrato da classe média carioca, cuja hipocrisia só poderia ser ressaltada e entendida por quem a conhece bem", afirma o diretor. Assim, ele convidou a atriz para ser a matriarca Dona Mocinha, que vive em meio a um jogo de mesquinharias, mentiras, disputas de poder (e dinheiro). "A peça se passa nos anos 1950, quando a política era dividida entre Getúlio Vargas e seu principal oposicionista, do qual eu não gostava, Carlos Lacerda", relembra Beatriz. "Foi a partir desse desprezo que construí meu personagem." A peça tornou-se outro marco do Tapa, que só agora volta a cruzar seu caminho com o da atriz pela absoluta falta de um texto que os unisse novamente. Fato consumado novamente com A Senhora das Cartas, cujo processo de ensaio foi desenvolvido em separado por Tolentino - nenhum dos quatro atores se cruzou durante a preparação, ainda que uma linha tênue marque a saída de cena de um e a entrada do outro: o primeiro desce uma escada enquanto o outro sobe. Diante de um texto aparentemente banal, Tolentino descobriu pistas que exigem concisão do diretor e dos atores. "São figuras anônimas, praticamente imperceptíveis", comenta Tolentino. "Trata-se, em minha opinião, da peça que melhor aponta os efeitos da solidão sobre as pessoas", completa a atriz, cujo personagem sofre uma epifania capaz de alterar a forma com que observa a vida. "Em apenas um momento, ela consegue alterar seu ponto de vista", observa Beatriz, que revela o texto que gostaria ainda de montar com o Tapa: O Jardim das Cerejeiras, de Chekhov. Também apaixonado pelo texto, Tolentino só exige condições necessárias - tanto que recusou o convite para dirigir uma montagem. Motivo: ofereceram-lhe apenas dois meses de preparação. "Para se entender Chekhov, é preciso muito mais", justifica. Serviço Retratos Falantes. 70 min. 14 anos. Teatro Eva Herz (166 lug.). Av. Paulista, 2.073, 3170-4059. Sáb., 19 h e 21 h; dom., 18 h e 19h30. R$ 40. Até 31/5 Outras Histórias A SUA GRANDE CHANCE: Lesley (Chris Couto) é um tipo de atriz que não deixa escapar nenhum dos testes para atores que ocorreram na cidade, não perde uma noite de estreia e também é figura carimbada nas festas do meio artístico - sempre à espera de ser, finalmente, convidada para o papel da sua vida. UMA CAMA ENTRE LENTILHAS: Mulher de um reverendo anglicano, Susan (Clara Carvalho) participa de atividades para as quais não tem aptidão, como cerimônias de rotina, quermesses beneficentes, corais vespertinos e arranjos florais. Refugiada no álcool (substituto do vinho da missa), ela é surpreendida por uma revelação no fundo do armazém, quando se tornará o bode expiatório da paróquia. 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