Modernos, ma non troppo

Tese de Alex Ross esbarra na retomada da tradição, marca do trabalho de compositores atuais

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

"Eu tenho um sonho." Alex Ross poderia parafrasear Martin Luther King. O sonho de um denominador comum na música do século 20. Música não, músicas que unam numa só comunhão compositores e público. Afinal, desde o divórcio entre estes dois atores da cena musical, no início do século 20, a sensação de abismo entre uns e outros só cresceu. Hoje parece intransponível. De Schoenberg a Stockhausen e Pierre Boulez, uma linha reta de criadores deu as costas ao público. E ditou o modo como a música evoluiu no século. Mais: recalcou dezenas de grandes compositores que ousavam praticar as cartilhas ultrapassadas da tonalidade. Para promover esta reconciliação, só mesmo colocando um plural na palavra música. Foi o que fizeram, quarenta anos atrás, os norte-americanos Morton Feldman, Steve Reich e Philip Glass. O minimalismo, chamado com ironia mas justeza na Europa de "música repetitiva", resgatou o pulso regular e a tonalidade na criação contemporânea. Sobretudo, ampliou o olhar para assimilar e deglutir as outras músicas: populares, folclóricas, orientais, etc. É o que também faz Alex Ross nas fascinantes páginas de texto corrido de O Resto É Ruído, traduzido por Claudio Carina e Ivan Weiz Kuck. Texto legível, que traz para o leitor comum o que ele chama de "obscuro pandemônio na periferia da cultura". É a maior virtude deste livro admirável: trocar em miúdos uma história que até agora vinha sendo contada esotericamente, de modo complicadíssimo. Mas, para entendermos o que está por trás deste discurso, o que alimenta suas concepções, precisamos dar uma boa olhada na cena norte-americana atual. Porque, mais do que pós-modernismo, creio que se pode chamar de estética da inclusão sua carta de princípios. A primeira geração minimalista, a de Reich e Glass, já é fenômeno velho. Incorporou sim o pulso regular, mas o fez de modo hipnótico. As peças minimalistas dos anos 60 são de fato instigantes e desafiadoras. O problema é que virou receitinha de composição, como, aliás, a música serial nas décadas anteriores do século 20. A grande maioria das peças minimalistas de segunda geração pode levar o ouvinte ao desespero em alguns minutos, pela repetição obsessiva. Os pilares de sua argumentação são, pela ordem: o compositor John Adams, segunda geração minimalista, hoje com 61 anos; e o movimento Bang on a Can, erupção mais vistosa da música de "New York downtown", que se opõe à oficialista "New York uptown", que faz música para as elites de Manhattan. Adams, depois de várias obras importantes, como Harmoniehlere, para orquestra, e as óperas Nixon in China (1987), A Morte de Klinghofer (1990) e El Nino (2000), acaba de lançar em DVD a ópera Doctor Atomic, focada no dilema de Oppenheimer e a bomba atômica. Se a música das três primeiras óperas já não era estritamente minimalista porém exibia vitalidade intensa, o mesmo já não se sente neste Doutor Atômico. Hoje, ele é apenas mais um compositor neoclássico lambuzando-se de século 19. De igual modo, Bang on a Can, que nasceu como um festival de música experimental em 1987, hoje já tem sólido status na New York uptown: um de seus fundadores, David Lang, ganhou o Pulitzer de 2008, e o grupo é objeto de um excelente documentário dirigido por Frank Scheffer (os outros fundadores do grupo são Julia Wolfe e Michael Gordon). Mas a audição do mais recente CD com obras de Lang é frustrante. É música simplesmente chata, que retorna a um minimalismo meio caricato. Pierced, a faixa-título, trabalha com uma pequena célula melódica fincada num bate-estaca imutável. São 14 minutos difíceis. Das cinco faixas, a mais interessante não é composição, mas um arranjo de Lang para Heroin, o clássico de Lou Reed divinamente cantado por Theo Bleckmann (os 11 minutos valem o CD, mas a faixa pode ser baixada na internet a módico preço). VAMPIRIZANDO O POP Um olhar, aliás, sobre a cena norte-americana mostra que o arranjo de Lang não é atitude isolada. John Corigliano, em seu mais recente CD, Mr. Tambourine Man, musicou sete letras de Bob Dylan. Sim, você leu direito. Ele musicou clássicos como Blowin? the Wind e Forever Young, para soprano amplificada e orquestra. E jura que jamais ouviu as canções do bardo. É mais ou menos como alguém musicar Caetano Veloso e dizer que jamais ouviu suas músicas. Seria mera curiosidade ou idiotice - mas o Grammy 2009 premiou-o como CD de música contemporânea! A fragilidade da música sobre a qual se apóia Ross enfraquece sua tese inclusiva. Mas não pense que a situação é animadora na Europa. O último CD de Penderecki, celebrado compositor polonês da vanguarda dos anos 60, contém duas obras neoclássicas quase-século 19 (ou seria barroco?): Concerto Grosso nº 1 para 3 Cellos e Orquestra, de 2000, e Largo para Cello e Orquestra, de 2003. O choque é que um desavisado completou o CD com uma obra de 1964 que soa amalucadamente vanguardista em relação às anteriores: Sonata para Cello e Orquestra. Nem sempre se caminha para a frente, não é mesmo? O caso do britânico Michael Nyman é parecido. Ele assinou, nos anos 70, um livro excepcional sobre a música contemporânea - Experimental Music : Cage and Beyond -, mas dos anos 80 em diante notabilizou-se pelas trilhas sonoras, principalmente para Peter Greenway. Pois ele virou abóbora. Seus dois últimos CDs não poderiam ser mais passadistas. Um traz gravações realizadas dez anos atrás, com o Concerto para Piano, com a ótima pianista Kathryn Stott; o outro intitula-se Nyman: Mozart 252, com pastiches popularizantes de música de Mozart (para quem se lembra, é pior, muito pior do que Waldo de los Rios, que arranjou Beethoven e a Sinfonia nº 40 de Mozart; este, pelo menos, tinha swing; Nyman parece um jumento tentando um pas-de-deux sonoro). Em suma, a tese de Alex Ross é muito interessante. E merece nossa solidariedade, porque tenta oferecer alternativas à perspectiva européia. Mas não precisava ter tanto rancor de excepcionais compositores como Stockhausen ou Boulez. Este, especialmente, é tratado como um psicopata no livro. Não pega bem chamar Boulez de ilusionista: "Boulez sempre conseguiu habilmente manter a ilusão de estar muito à frente - a marca de um mestre da política". Também soa forçado fazer de Thelonious Monk um influenciado por Schoenberg . O DVD Music for Airports/In the Ocean, lançado em janeiro passado, é emblemático desta ambigüidade entre qualidade do discurso verbal e ausência dela na música. São 50 minutos: os líderes de Bang on a Can arranjam Music for Airports, composta por Brian Eno em 1978. Eno é guru de Michael Gordon, David Lang, Julia Wolfe e Evan Ziporyn. Se o original já era propositalmente papel de parede sonoro, segundo a feliz expressão de Erik Satie nos anos 20, estes arranjos provocam ainda mais letargia. Contribuem decisivamente as imagens sempre desfocadas de Sheffer, aparentemente de um aeroporto, claro. O documentário In the Ocean é mais sintomático do tratamento dado aos europeus. Pretende, segundo o texto do folheto do DVD, contar a história das relações musicais entre Estados Unidos e Europa nos últimos trinta anos. Mas o que se vê é a história de como a América triunfou sobre o velho continente. Philip Glass, por exemplo, reverencia o fato de que "hoje a música pode ser tonal, o que é novo". "Nos anos 60, sabíamos bem o que era a música moderna. Hoje não sabemos mais." David Lang acrescenta: "Existem centenas de domínios válidos na música. Espero que no futuro haja milhares". E Glass completa com esta estorinha: "Quando estudei com Nadia Boulanger em Paris, ela me dizia às vezes: tenho pena de vocês americanos, pois não têm o sentido da história. Eu não respondia nada, mas pensava: sim, exatamente, é isso que faz nossa força". Sinceramente, não sei se mergulhar de cabeça na música popular ou costurar arremedos de pulsos regulares é a solução. Pode ser um atalho e dar até bons e inesperados frutos. Mas não a chamada avenida principal. O século 20 em cinco autores, por Ross ARNOLD SCHOENBERG: Outros compositores da virada do século também concebiam sua situação como a luta solitária contra um mundo estúpido e cruel. Claude Debussy, em Paris, adotou uma postura antipopulista nos anos anteriores a 1900 e, não por acaso, rompeu com a tonalidade convencional. Mas Schoenberg foi responsável pelos avanços mais drásticos e introduziu uma elaborada teleologia da história musical, uma teoria do progresso irreversível, para justificar seus atos. A metáfora do Fausto faz justiça ao terror que a força destrutiva de Schoenberg inspirava nos primeiros ouvintes. IGOR STRAVINSKY: O acorde (em A Sagração da Primavera) se repete cerca de 200 vezes. Ao mesmo tempo, a coreografia de Nijinsky trocou o gestual clássico por uma quase anarquia. (...) Dos camarotes, onde sentavam os espectadores mais abastados, vinham urros de desaprovação. Os estetas dos balcões e dos lugares de pé urraram de volta. Os eventos exibiam matizes de luta de classes. O compositor Florence Schmidt teria dito: "Calem a boca, vagabundas do seixième!" - provocação às damas da alta sociedade do sexto arrondissement. "Não se podia ouvir o som da música", recordou Gertrude Stein. JOHN CAGE: No espírito turbulento dos anos 60, uma onda de vanguarda fez com que o acaso, a indeterminação e a notação gráfica formassem uma tendência na Europa. Alguns gravitaram em direção ao passado musical, com citações e colagens. Outros procuraram espaços interestelares (...). Havia os dadaístas brincalhões, referências do pop, adeptos de um novo modismo envolvendo cantigas comunistas (agora em nome de Castro e Mao). (...) John Cage estava entrando em seu período de maior prestígio. KARLHEINZ STOCKHAUSEN: Em 1960, Stockhausen completou Kontakte, em que sons eletrônicos e ao vivo se afastam ou misturam num borrão. (...) Em 1962, o mundo teve o primeiro vislumbre do que se tornaria o Momente, de duas horas de duração, envolvendo quatro corais, uma solista soprano, uma falange de trompetes e trombones, um par de órgãos eletrônicos e uma bateria de percussão centrada num tantã japonês muito grande. Foi a bacanal da vanguarda, uma liberação dos sentidos com gritos, bater de palmas e batidas de pé. JOHN ADAMS: Nixon in China, a primeira ópera de John Adams, apresenta transmutação ainda mais drástica do estilo europeu. Nada parece mais improvável que a ideia de uma ópera americana baseada nos eventos que cercaram a visita de Nixon à China em 1972. Quando o diretor Peter Sellars propôs o tema pela primeira vez, Adams pensou que estivesse brincando. Sellars sabia o que fazia. Ao transportar a ópera para um cenário contemporâneo conhecido em todo o mundo, ele quase obrigava Adams a se livrar de todas as teias de aranha do passado europeu.

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