''Minha obra traz a vivência das ruas''

Abandonada pelos pais ainda bebê, Paula Fox retrata a solidão de forma exemplar, como em Pobre George, seu livro de estreia

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Por Ubiratan Brasil
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Professor inquieto e de fala mansa, George Mecklin ensina inglês em uma escola particular de Manhattan, nos anos 1960. Imerso em uma rotina enfadonha e deprimido com a falta de perspectiva, ele é surpreendido, certa noite, com a presença de um estranho em sua casa. Ernest não é ladrão, mas voyeur de lares vazios. Em vez de entregá-lo à polícia, George decide salvá-lo da vida desregrada, desenvolvendo uma atração que beira o apego físico. Com uma trama que delineia o perigoso bucolismo do subúrbio americano, a escritora Paula Fox oferece, com Pobre George (Record, tradução de Maria Alice Máximo, 272 páginas, R$ 30), um retrato sombrio, mas inquietante da América. O livro foi lançado em 1967, três anos antes de Desesperados, editado aqui pela Companhia das Letras. Seguiu-se um injustificável período de silêncio, da crítica e do público, em que Paula era mais lembrada por obras infantis e por ser a avó de Courtney Love. Até que, no início do novo milênio, jovens escritores como a dupla de Jonathans (Franzen e Lethem) tiraram o pó que ofuscava aqueles títulos, devolvendo-lhes o devido reconhecimento. Assim, perto de completar 86 anos (no dia 22), Paula Fox tem sua prosa equiparada hoje à de Muriel Spark, Nathanael West e até Chekhov e Melville. Os estragos provocados pelo tédio e a solidão na alma humana habitualmente são seu ponto de partida, temas que lida com tamanha desenvoltura a ponto de incitar os desavisados a imaginá-la como uma mulher circunspecta. É uma sorridente senhora, no entanto, que conversa por telefone com o Estado, feliz pela ressurreição de sua obra e arriscando palavras em espanhol que a fazem recordar o período vivido em Cuba. Qual é a sensação de acompanhar a reimpressão de seus romances depois de um longo período? Claro que fiquei feliz, mas minha obra nunca saiu de catálogo na Espanha, Alemanha, França. O detalhe é que, nos Estados Unidos, é diferente a forma como as pessoas veem a vida, daí a sensação de estranhamento provocada pela minha escrita. É curioso como algumas frases de meus romances são mais bem compreendidas hoje. Como, por exemplo, uma de que gosto muito, do livro The Western Coast: "Você precisa fazer julgamentos. Como uma pessoa consegue viver sem eles?" Seria essa uma filosofia de vida? Talvez sim. Nem sempre é bom manter a boca aberta (risos). Minha avó já dizia que pode ser a porta de entrada para moscas. É preciso tempo, experiência de vida, para se fazer bons julgamentos. Mas não se pode isentar de fazê-los, pois, caso contrário, viveríamos em meio a um caos. É possível dizer que sua prosa é marcadamente autobiográfica? Com certeza. Creio que quase nenhum autor escapa disso, pois tudo o que cada um sabe é sobre si mesmo. Assim, a escrita nada mais é que uma variação das próprias experiências. E confesso que fico muito exaltada ao escrever. Com a velhice, o escritor descobre que o processo da escrita nada mais é que refinar todos os elementos mais fortes da própria personalidade. Ou seja, transformar detalhes particularmente pessoais em algo impessoal. Seria, então, um processo de catarse? Sim, claro. É uma experiência semelhante à vivida por um músico: ao tocar seu instrumento, ele sente as notas percorrendo seu corpo, transformando seu momento. Para mim, é um processo de sabedoria, de crescimento espiritual. Como surgiu o personagem George Mecklin? Foi algo puramente casual. Em uma reunião, eu escutava a conversa de uma pessoa que nem conhecia quando algumas frases despertaram minha atenção: "Ouvi uma história sobre um homem que levou um menino para casa..." Imediatamente, comecei a pensar no que teria acontecido. Imagens surgiram na minha mente e logo visualizei a casa onde George vivia. A partir desse momento, criei uma vida inteira para ele. Seu estilo é muito marcante - a ponto de, mesmo nos textos infantis, você não se incomodar em tocar em temas como morte, doenças, deficiências... Não tive uma infância que se pode dizer feliz (sua mãe não conseguiu abortar em tempo e, depois de nascida, Paula foi entregue à avó, que também a passou adiante até ser adotada por um reverendo). Assim, trato as crianças como alguém que já fui. A vivência das ruas está toda lá.

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