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Mil olhos em Gaza

Primeiro livro da escritora Susan Abulhawa provoca onda de obras de ficção sobre a questão palestina

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Quando até o ditador líbio Muamar Kadafi, que já apoiou terroristas e pregou a destruição de Israel, reconhece que israelenses e palestinos são interdependentes e devem coexistir sob um único teto, era de se esperar que surgisse um escritor capaz de traduzir em ficção essa união incontornável. Esse autor é uma mulher, nascida numa família de refugiados da Guerra dos Seis Dias, em 1967, e criada em vários lugares até conseguir a cidadania americana e estudar ciências biomédicas na Universidade da Carolina do Sul. Cansada de ler textos frios sobre o conflito palestino-israelense, Susan Abulhawa decidiu escrever um romance quente, A Cicatriz de David (Editora Record, tradução de Maria Alice Máximo, 450 págs., R$ 39), ambientado entre 1941 e 2002 , justamente no lugar mais explosivo do planeta. O livro faz o maior sucesso nos EUA e pode vir a representar para os palestinos o que O Caçador de Pipas virou para os afegãos. Em entrevista (leia nesta página) por telefone ao Estado , Susan Abulhawa não nega que, a exemplo de Khaled Hosseini, há em seu livro um pouco de militância pela preservação da memória de seus ancestrais. A narradora, Amal, nascida num campo de refugiados, preferiu, como a autora, partir para os EUA, mas não esqueceu os antepassados. Um deles é o David do título, chamado Ismael, como o filho de Abraão, antes de ser raptado por um oficial israelense - cuja mulher não pode ter filhos - e criado como uma criança judia. Vinte anos mais tarde, David vai lutar numa guerra fraticida contra o irmão mais velho, que o reconhece pela cicatriz no rosto. É preciso ler A Cicatriz de David como uma narrativa transcultural que rejeita o apartheid, o nacionalismo e o fundamentalismo religioso, embora, na entrevista, a escritora palestina esclareça que sua intenção, ao ligar o rapto de Ismael aos crimes cometidos pelos nazistas contra os judeus na 2ª Guerra, foi justamente a de ilustrar como os palestinos acabaram pagando pelas atrocidades dos alemães com o sangue e a terra. Mas o livro, antes de tudo, é sobre a preservação da memória palestina e, embora não atinja a excelência literária do libanês Elias Khoury em Porta do Sol, vem aumentar a lista de títulos da Editora Record sobre o tema, como Em Busca de Fátima, de Ghada Karmi, que narra a experiência da própria família da autora, vivendo em Jerusalém durante o conturbado período da criação do Estado de Israel. Ghada Karmi tornou-se ativista com a derrota dos árabes na Guerra dos Seis Dias, quando Susan Abulhawa ainda era um bebê. Hoje, mil olhos palestinos como os das duas mulheres reveem a experiência judaica do exílio como a própria, uma vez que as duas escritoras optaram por viver em outros continentes (Ghada na Europa e Susan na América)e sentem-se quase obrigadas a manter viva a memória dos ancestrais. Essa é, aliás, a missão que assume o médico Khalil, filho espiritual de um líder da resistência palestina em Porta do Sol. Em coma profundo num campo de refugiados, Yunis é uma metáfora da saga do povo palestino, mantido vivo graças à vigília do filho que, imitando o gesto de Xerezade, contra e reconta histórias de seu povo. A preservação da identidade cultural num mundo dividido é tema de outro livro que, como A Cicariz de David, foi também escrito por uma mulher, Ibtisam Barakatyam, Tasting the Sky: A Paltinian Chlidhood (Farrar Straus & Giro , R$ 58). Tocante.

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