Mia Couto trata da identidade como essência humana

Moçambicano lança Antes de Nascer o Mundo e debate sua obra para o teatro

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Por Ubiratan Brasil
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O último vestígio da humanidade está em Jerusalém, na savana de Moçambique, onde vivem cinco homens. Um deles, Silvestre, garante que o mundo acabou e que qualquer mulher representa a desgraça. Certo dia, porém, garante ele, os donos daquela terra voltarão para reivindicá-la. Pior: virá também uma mulher para alterar a rotina daquele grupo. É a partir de uma trama aparentemente fantástica que o moçambicano Mia Couto discute, em Antes de Nascer o Mundo (Companhia das Letras, 280 páginas, R$ 42), um tema que lhe é caro: o passado. O livro, que será lançado por ele hoje, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, traz uma parábola sobre as feridas que insistem em ficar abertas, incomodando os homens de falsa pretensão: apagar o que já passou. Mia Couto revigora aqui a questão da identidade como essência. Também dramaturgo, ele participa amanhã, no Sesc Avenida Paulista, de um debate sobre a montagem de O Outro Pé da Sereia, versão da Cia. de Teatro Fábrica São Paulo. E sua própria produção teatral será o tema do 2º Festival de Teatro de Língua Portuguesa, que começa no dia 2, no Rio de Janeiro. Como surgiu Antes de Nascer o Mundo? Meus romances têm sempre pontos de partida diversos e muitos nunca serão claros. Outros eu entendo que os reconstruo a posteriori. Visitei nas zonas interiores de Moçambique algumas coutadas de caça, depois da guerra civil, e encontrei famílias completamente isoladas do mundo. Bastava, porém, um contato mais íntimo para entender que o nosso mundo permanecia vivo nessas comunidades aparentemente fechadas. Como uma espécie de doença a que não podemos escapar: a nossa essência é a nossa história comum, as nossas sociedades, por muito diferentes que pareçam, partilham o mesmo confronto entre a utopia de podermos renascer das cinzas e a frustração de carregarmos um passado demasiado pesado. Vivi a experiência vitoriosa de um regime revolucionário que tinha por ambição mudar o mundo. De uma maneira, isso surgia como uma viagem para fora deste mundo. O projeto falhou. Há quem pense que isso sucedeu por traição. Acredito que essa explicação é muito simplista. Houve traições, sim, mas elas não explicam o desfecho falhado. Neste livro, está presente essa impossibilidade de renascermos do zero e da absoluta negação do que já fomos. Talvez a paixão e o amor (temos quase medo da palavra "amor") sejam a única possibilidade de nos reinventarmos no tempo que nos foi dado viver... O isolamento, em um sentido amplo, seria um dos grandes problemas atuais do homem? O isolamento não é exatamente uma medida da solidão. A incapacidade de viajar para o Outro, a inabilidade de ser o Outro. É essa a solidão que não sequer conta. No nosso planeta nunca antes pudemos contactar tanto. A verdade é falamos muito pouco, se pensarmos que falar é trocar parte das nossas almas. Nunca houve tanta avenida e tanta via rápida. Mas nós nunca antes nos visitamos tão pouco. Há uma crítica à globalização? Não faço parte desse exército. O termo "globalização" banalizou-se e foi usado de modo abusivo. Já não quer dizer nada. Gostaria muito de estar globalizado. Mas de outro modo, de outro globo. Seu livro O Outro Pé da Sereia foi adaptado para o teatro por um grupo de São Paulo. A oralidade de sua prosa favorece a transição para o palco? Creio que sim. Eu escrevo e reescrevo a frase até a grafia desaparecer e eu possa escutar o texto. Quando a palavra se converte em vozes: aí começa, para mim, a sedução da escrita. O que a dramaturgia oferece que você não encontra na prosa? A realização da oralidade, a devolução da palavra à sua fonte natural. Encontrei no teatro uma escola e percebi que, ao assistir às reações dos espectadores, eu podia aperfeiçoar a força de comoção dos meus textos. Como a África pode celebrar a vitória de Barack Obama? Uma receita geral não existe. Mas seria encarar com verdade o que nos afasta do nosso retrato verdadeiro, desapaixonado e livre de preconceitos. Eu escrevi um texto quando da eleição de Obama questionando o modo como uma vitória de um candidato mulato, vindo da oposição e sendo filho de emigrantes seria impossível em grande parte dos países africanos. Muitos dirigentes africanos vivem relembrando os preconceitos retrógrados dos colonizadores. Mas eles ergueram um muro de preconceitos tão graves como os do passado. Mantém-se uma incompreensível complacência, mas as ditaduras criminosas não podem mais ser justificadas pelos africanos apenas porque sucedem em África. Serviço Mia Couto Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, 3170-4033. Hoje, 19h Sesc Avenida Paulista - Espaço Décimo Andar (80 lug.). Avenida Paulista, 119, 3179-3700. Amanhã, 18 h. Grátis

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