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''Meu testemunho é impreciso''

Em Coração Andarilho, Nélida Piñon não se preocupa com fatos para criar suas memórias afetivas

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Por Ubiratan Brasil
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A palavra sempre teve um peso valioso para a escritora Nélida Piñon - nenhum livro seu sai da gráfica sem um cuidadoso preparo. "Já cheguei a fazer nove versões de uma mesma história", comenta Nélida, que utilizou o mesmo procedimento para Coração Andarilho, seu primeiro livro de memórias lançado agora pela Record (352 páginas, R$ 38). Filha de uma brasileira e de um pai nascido na Galícia, ela descobriu o mundo (real e literário) quando viajou pela primeira vez para a Europa, aos 12 anos. "Isso me deu uma condição de dupla cultura, de ser mestiça, e me ajudou a enxergar o mundo", conta Nélida, que estreou na literatura em 1961, com Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo. E, embora tenha colecionado amigos ilustres (Mario Vargas Llosa, Toni Morrison, entre outros) e prêmios (foi a primeira autora de língua portuguesa a vencer o Prêmio Príncipe de Astúrias das Letras), Nélida dedica-se, em Coração Andarilho, às memórias de sua primeira infância, como o fato de ter nascido em casa e não em um hospital, onde a mãe temia não reconhecer a própria filha. E também dos avós galegos, que lhe ajudaram a expandir a visão de mundo. Memórias afetivas, despreocupadas com os fatos, como comenta na seguinte entrevista, realizada por telefone. O que a levou a escrever essas memórias? Eu sempre soube que chegaria o momento das memórias. Fui uma menina que muito cedo despertou para a literatura, uma vocação estranha, enigmática, uma paixão por algo aparentemente sem contorno. Convivendo com essa literatura, descobri os motivos de ela fazer parte da minha vida. Existe uma harmonia profunda entre quem sou e por que ela me tocou. Assim, eu queria esclarecer minha gênese e minha formação. Mas por que esse desejo se manifestou agora? Não, já faz muito tempo que penso nisso mas nos últimos dois anos ficou mais forte. Eu sabia que viria mas não sabia quando. De repente, larguei um romance ainda em produção (já escrevi 60 páginas de uma história forte, contundente) porque as lembranças foram chegando. Tenho material para até três livros de memória. Resta saber se vou querer publicá-los. E, nesses dois anos, sobretudo no último, o livro nasceu com uma força, com evocações muito extremadas. Seus livros sempre recebem muitas versões. E com esse de memórias? Também, porque o livro não nasce pronto: surge com um grande arcabouço, mas a linguagem que vai ser seu semblante vem com o trabalho. Só é preciso se preocupar com o afã, pois pode asfixiar a emoção do texto. Sempre digo que o crítico não mata um escritor, mas ele próprio se suicida ao esterilizar o texto, torná-lo artificial, liquidar o mínimo de melodramático que é fundamental para o campo da emoção. E nas memórias fiz muita revisão - a linguagem, que julgo bem elaborada, revela a emoção. Mas meu testemunho é impreciso, nascido dos meus desacertos. O livro permitiu descobertas? Sim, muitas. Uma delas foi descobrir a figura de meu pai, Lino. Eu não falava publicamente sobre ele enquanto vivo, apenas entre familiares. Mas o livro revela minha dor de perdê-lo. A cena do enterro é muito simbólica, pois representou uma espécie de carta de alforria. Eu tirei o privilégio dos homens da família de escolher o caixão do meu pai. Foi muito duro. A partir dali, com minha mãe abaladíssima, tive de assumir todas responsabilidades. Tanto que ela estranhou o fato de eu não ter chorado durante os dois primeiros anos após a morte dele. Até o dia em que escrevi uma grande carta para o meu pai, explicando minhas razões a ela. Eu precisava ser forte - afinal, não é fácil ser escritora, ser brasileira, sobreviver com dignidade e de acordo com aspirações maiores. Como a experiência de ter quatro avós galegos enriqueceu sua vida? Foi fundamental. Eu me tornei uma mulher cosmopolita, múltipla, arcaica (digo isso pois tenho 5 mil anos de história nas costas) depois da minha primeira viagem à Europa. Eu lia muito, mas meus limites eram o Rio de Janeiro e São Lourenço, pátrias da minha imaginação. Quando quebro esse paradigma geográfico, com minha mãe explicando que a Espanha não era um bairro do Rio, começo a ver que minha fatalidade histórica era atravessar o Atlântico e fazer o caminho contrário dos imigrantes. Com isso, a geografia se tornou fundamental na minha vida. Nenhuma paisagem é vazia para mim, mas impregnada de mitos, conceitos, história, transações, pecados, transtornos, crise. Assim, quando admiro alguma paisagem, sei que não estou vendo apenas uma imagem mas sabendo que há muito mais por detrás dessa visão. Toda analogia é possível e isso é importante para a poética do texto, assegurando uma liberdade criativa. A metáfora do cotidiano está ao meu alcance. As viagens foram importante para sua aprendizagem de vida? Sim, demais. Continuo viajando muito, mas hoje advogo a grandeza do cotidiano, da casa. Tenho convívio íntimo com os objetos, com a comida, com a sucessão dos fatos corriqueiros. Admiro o trivial da vida. Com isso, consigo ao menos administrar a vaidade. A literatura tem coerência com minha vida. Espero ter forças para continuar a criar sem medo. Você carrega seus personagens para a vida real? Não, separo os momentos. Meu cordão umbilical com a casa e com a vida não está cortado. Claro que prefiro escrever sozinha, mas não sou uma escritora augusta, aquela em que a vida tem de parar por estar impregnada pela grandeza da criação. Eu aceito as pausas da vida.

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